O amor nem sempre vence

terça-feira, 21 dezembro 2010, 14:36 | Tags: , , , , | 2 comentários
Postado por Fábio Betti 

Um desabafo partilhado por um amigo foi capaz de sequestrar minhas palavras. Precisei de tempo para recuperá-las e, agora, para honrar a confiança depositada em meu ouvir, preciso falar sobre o delicado e, entre os casais, pouco discutido tema da liberdade no amar.

Vinte e poucos anos atrás, conheci Roberto Freire – o psiquiatra, não o político. Nosso primeiro encontro deu-se por meio do livro “Coiote”, que, em essência, conta uma história de amor, só que um amor inominável e inaceitável em um contexto retrógrado pós-hippie (década de 80). Como muitos de minha geração, fui bastante impactado por esse personagem, apresentado pelo autor como “protomutante”, um jovem vindo do futuro para chacoalhar o meio conservador com os sonhos, utopias e as paixões da juventude revolucionária brasileira.

No entanto, eu e muitos outros jovens daquela época vivemos esse processo revolucionário de maneira restrita à literatura e ao cinema. Éramos “garotos exemplares”, filhos obedientes e primeiros alunos da classe. No entanto, atrás da fachada de bons meninos, germinava a semente da rebeldia. Rolava muita droga debaixo dos panos e alguns amigos chegaram a frequentar os encontros promovidos por Roberto Freire embalados pela Somaterapia, terapia corporal que ele criou baseada nas teorias psicanalísticas de Reich e de conceitos anarquistas – terapia que, aliás, existe até hoje, apesar de sua morte, em 2008. Os relatos das dinâmicas, com muito contato corporal e uma liberdade sexual chocante para a época, acabavam por inibir a maioria de nós, que permanecia no mundo da imaginação, onde toda – ou quase toda – liberdade é permitida.

O tempo passou e nos transformamos em adultos, pais de família, maridos cheios de soberba, profissionais bem sucedidos. Alguns de nós se separaram e se casaram de novo. Outros se separaram e tentaram recuperar o tempo perdido na adolescência comportada pulando de uma relação a outra. E um terceiro grupo continuou insistindo na sustentação de relacionamentos duradouros. Nenhum de nós, no entanto, chegou nem perto de praticar os modos de vida livre que povoavam nossos sonhos e nossas conversas após as muitas leituras e incursões ao cinema.

Até que, um belo dia, um amigo me procurou para uma “conversa séria”. Quando o encontrei, imaginei-me o Josef Breuer de Irvin D. Yalom, cara a cara com a personalidade perturbada de Nietzsche na ficção-realidade “Quando Nietzsche chorou”. Meu amigo parecia mesmo fora do eixo. Bem de saúde, bem sucedido profissionalmente e bem casado – com filhos lindos e uma mulher que, apesar dos muitos anos juntos, ainda o amava e que também era amada por ele -, tinha tanto “bem” em sua vida que a história que ele contava soava como uma ficção doentia.

Para preservar-lhe a identidade, o resumo da ópera é que ele estava, ao mesmo tempo, amando quatro mulheres: sua mulher e outras três que ele havia conhecido no espaço de um ano. Ele dizia amar cada uma de um jeito diferente e, por isso, cada relacionamento era absolutamente ímpar. Tinha a da paixão arrebatadora, a do encontro de alma, a do amor platônico do tipo “nunca te vi, sempre te amei”, além da relação prazerosa e de cumplicidade com sua esposa. Ao ouvir-lhe o relato, fui transportado para as rodas de conversa de minha juventude, mas, ao contrário dos livros e filmes, era meu amigo que estava ali na minha frente, de carne e osso, contando algo que estava acontecendo para valer e naquele momento e não numa obra de ficção vivida por alguém fora de meu círculo. Isso fazia toda a diferença.

A “loucura” de meu amigo vinha do fato de, nas palavras dele, não ser capaz de suportar tamanha amorosidade – “a sensação é que o coração vai explodir” -, mas, ao mesmo tempo, de desejar profundamente vivê-la em toda a sua plenitude. De um lado, o desejo, que ele diz ser seu e também de suas parceiras, e, do outro, o medo e o julgamento de estar numa relação proibida ou não convencional, algo que ele também diz ser partilhado por ele e suas parceiras, excetuando sua esposa, que não sabe ou, pelo menos, não demonstra saber que ele está vivendo esse momento de “amor sem fronteiras”. Nesse ponto de nossa conversa, meu amigo me pede um conselho e eu calo, quedo mudo como uma rocha.

O que dizer a alguém que é capaz de amar de forma não exclusiva em uma cultura que se perpetua por meio da exclusividade, da posse, do controle, do contrato em detrimento do trato? Ele deve ou não contar de seus amores para sua esposa? E o que ele poderia fazer para ajudar suas outras parceiras a aceitar essa condição?

Adoraria acreditar no poliamor pregado pela psicanalista Regina Navarro Lins. Adoraria que ela pudesse ajudar o meu amigo a viver sua capacidade amorosa em toda sua intensidade. Mas tenho dúvidas que um peixe que nasceu e cresceu num aquário conseguiria sobreviver no mar…

Vejo um homem e quatro mulheres vivendo relações únicas, mas aprisionados pelas mesmas crenças e regras de conduta. Nenhum deles acredita verdadeiramente ser capaz de viver o amor livremente. E aí assim vivem-no no “pecado” ou simplesmente não se permitem vivê-lo.

Não falo teoricamente sobre nada. Falo sempre a partir de mim, de minhas próprias experiências, que estabelecem a forma como enxergo o mundo. Se eu estivesse no lugar do meu amigo, se eu estivesse vivendo o que ele está vivendo, creio que eu agiria de acordo com a cultura onde nasci e continuo aprisionado: faria uma escolha e renunciaria às outras. Optaria, mais uma vez, pela escolha do “ou” e não do “e”.

Com isso, resolveria o problema do meu amigo? É óbvio que não. Alguém capaz de amar tão livremente não será sufocado por uma má escolha, uma decisão que coloca o amar no banco dos réus. Espero, portanto, que ele não siga o meu conselho e que escolha o “e”, redimindo a todos nós que ainda vivemos (?) imersos na dualidade – dualidade que nos leva a culparmo-nos sistematicamente, seja por amarmos demais, seja por bloqueamos o fluxo amoroso em nome de um viver não natural, que nos ensinaram como único caminho possível para que os bons moços e as boas moças possam continuar existindo.

2 comentários para “O amor nem sempre vence”

  • Monica disse:

    Senti a inquietação do seu amigo e lembrei-me de um livro chamado A Alma Imoral. Foi uma leitura importante para mim por propiciar reflexões a cerca da integridade dos meus desejos. Lembro-me de uma referência à “passagem estreita” que cada um de nós vivencia e que determina até onde a acomodação é aceitável e a busca de novos caminhos, inevitável. Uma frase: “O ato de crucificar, por sua vez, acontece tanto no mundo exterior como no íntimo de cada indivíduo.” Acredito que a fidelidade a nós mesmos – à essência divina e singular – seja a forma de realizarmos nosso propósito MAIOR.
    Lembrei, também, de uma palavra que um dos meus filhos tatuou nas costas: OHANA. É um conceito amplo e bonito de família que vem dos havaianos… Somos todos um, ou, como dizem no funk carioca: “tamo junto e misturado”!
    Um abraço.

  • Fábio Betti disse:

    A Alma Imoral é um dos raros casos em que me interessei tanto pelo texto, que acabei lendo o livro e assistindo a peça. Nosso conflito entre tradição e traição é histórica. Nem tudo que vem da tradição é ruim, nem tudo o que vem da traição é bom. E vice-versa. O importante, creio, é aprendemos a nos perdoar quando não conseguimos seguir um ou outro, mas, especialmente, nos perdoar quando, por algum impedimento externo, não formos capazes de seguir nosso próprio coração – esse, talvez, seja o maior dos pecados…

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