Borboletas

quarta-feira, 19 agosto 2020, 01:41 | Tags: , , , , , , , , , , , , , | Comentários desativados em Borboletas
Postado por Fábio Betti 

A natureza criou a tireóide na forma de uma borboleta. E a vida quis que eu perdesse a minha por causa de um carcinoma papílifero, uma nome ainda mais feio do que câncer. E Deus – quem mais faria algo assim? – me calou a voz para reacender em mim o poder de falar com o mais profundo de minha alma. E, ao fazer isso, tocar também a Alma de outras pessoas. Alma, assim, no singular. Pois, Alma, assim, em maiúscula, só existe mesmo uma. Falar com a minha, então, talvez seja falar com todas.

Sempre tive um fascínio por borboletas. Como pode um ser rastejante cheio de patas se transformar neste ente alado e pintado de cores tão variadas? O que será que a natureza quis dizer ao criar a borboleta? Seria só exibicionismo? Olha só o que eu posso fazer! Eu acredito piamente que a natureza resolveu usar a borboleta para nos ensinar algo.

Dizem que o bater das asas de uma borboleta seria capaz de causar um tufão no outro lado do planeta. Efeito borboleta. Não foi isso o que aconteceu em Wuhan?

Dizem também que a borboleta é o símbolo físico da alma humana e, assim como à noite a borboleta é atraída pela chama, a alma humana é pelas verdades celestiais.

Gosto de imaginar a borboleta como o poder supremo da natureza de transformar uma coisa em outra completamente diferente. Transformar tanto a forma quanto a função.

Antes da lagarta virar borboleta, ela passa por uma mudança em sua forma e estrutura. Esse processo se inicia, no entanto, bem antes de a larva construir o casulo, onde, em segredo, irá se transformar em borboleta. Como lagarta, ela vive meses até um ano e come o máximo que puder para produzir fios de seda ou similares e, assim, se abrigar dos predadores. Ao atingir a fase de pupa, depois de várias mudanças de pele, o animal usa esses fios para construir o verdadeiro casulo. É nessa terceira fase que acontecem as grandes mudanças. A larva fica em estado de total repouso por um período que varia de uma semana a um mês e os tecidos do seu corpo vão se modificando. Quando a borboleta está pronta, ela rompe o casulo e libera as asas.

Enquanto a função da lagarta é armazenar energia para um dia construir seu casulo, a da borboleta é reproduzir, para que novas lagartas possam nascer. Assim, o propósito de cada uma é dar vida à outra, o que torna tudo ainda mais bonito e singelo.

Minha tireóide se foi junto com minha voz. A boa notícia é que o tumor partiu sem deixar vestígios. A notícia não tão boa é que a corda vocal que estava próxima do tumor se paralisou, me deixando sem voz por mais tempo do que o esperado. Enquanto reaprendo a falar, falo sem parar, só que escrevendo. Um texto por dia. As palavras vêm nas asas de borboletas. Ou nas ondas do mar. Basta que eu jogue a rede. E, ao recolhê-las, organize-as num texto que me faça sentido. Gosto de descrever assim a inspiração que surgiu como um grande fluxo interminável desde o primeiro dia após minha alta do hospital.

Minha tireóide borboleta voou para longe e, mesmo que os médicos tenham se esmerado na costura de minha garganta, parece que não foi o suficiente para que as palavras brotassem sem parar.

Antes de virar borboleta, eu fiquei alguns meses preparando meu casulo. Fiz uma dieta maluca para desintoxicação de 10 dias de duração – sim, 10 dias! – onde só podia tomar um caldo de ossos, que abandonei no terceiro dia – eca! -, água e chá. Depois disso, reaprendi a me alimentar, experimentando comidas saudáveis que ajudam meu organismo a se manter mais alcalino do que ácido, como sopas vegetarianas que eu mesmo preparo. Passei a meditar todas as manhãs e fortaleci meu sistema imunológico com um tratamento esquisito à base de vitaminas C e D, ozônio e vários fitoterápicos.

No meio desse caminho, tinha uma pedra. Tinha uma pedra parada no meio do ureter que precisou ser retirada à força por meio de uma cirurgia de emergência.

Descobri que o trabalho da lagarta não é mole, não. E por mais que eu soubesse que em algum momento seria necessária a retirada do tumor, eu não fazia ideia de que uma borboleta abriria suas asas e partiria para sempre, deixando em seu lugar uma matraca que desembesta a escrever compulsivamente. É meio cedo para afirmar que o Fábio falante se metamorfoseou no Fábio escritor. Mas é certo que a voz que em algum momento renascerá no Fábio não será mais a da lagarta. A lagarta se foi, levando com ela a voz mas também o medo de voar. E, da mesma forma que ocorre com a lagarta e a borboleta, se o Fábio falante deu vida ao Fábio escritor, em algum momento também será a vez do Fábio escritor dar vida ao Fábio falante.

De toda essa história, o mais curioso para mim é que o último registro oficial de minha antiga voz tenha sido uma live que fiz com um amigo uma semana antes da cirurgia sobre o medo da morte…

Desde minha própria experiência de morte e renascimento, espero que cada um possa aproveitar o tufão causado por uma borboleta do outro lado do planeta para que sua lagarta possa se preparar para o momento em que ela abrirá suas asas e finalmente se transformará naquilo que ela, com tanto trabalho e carinho, se preparou a vida toda para ser. Como disse Píndaro numa frase que ficou famosa por também ter sido cunhada por Nietzsche, “torna-te quem tu és”. Afinal, todas as demais pessoas já têm dono.

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