Temos 3 cachorros. Maya, Bartô e Nino. Maya tem 7 anos, deve viver mais 4 ou 5 anos, no máximo. Bartô ainda é um bebezão de 5 meses e não faz a menor ideia de que, em menos de 8 anos, já não estará mais entre nós. E Nino, o ancião de quase 17 anos, outro dia me encarou com seus olhos profundos e, se pudesse falar, teria dito: Eu sei.
Uma amiga me procurou querendo saber o que estava acontecendo comigo. Quase perguntei a ela: você tem tempo? Risadas à parte, ela vinha me acompanhando nas redes sociais e percebia o tema da morte muito presente em minhas postagens. Disse a ela que nunca estive tão bem. Sério. E de que, na verdade, eu escrevia sobre a vida.
É simples. O medo desperta, dá vida à coragem. A lagarta rastejante morre para dar vida a um ser maravilhoso capaz de voar. A borboleta, por sua vez, vive para dar vida à lagarta. Por que então falar da morte não seria falar da vida? Biologicamente falando, estamos falando da mesma estrada, com a diferença de que um desses dois está no fim dela. Ou, dependendo de sua crença, no começo. Porque, além de seres biológicos, somos seres humanos e, culturalmente, buscamos um sentido para nossa existência.
Queremos acreditar que nossa vida não se trata apenas de comer, trabalhar, descansar, procriar, ou seja, sobreviver. Queremos nos divertir, viver experiências que nos façam sentir bem. Queremos um trabalho com significado. Queremos nos apaixonar. Queremos amar e ser amados. Queremos ser reconhecidos. Queremos exercer nossa liberdade de ir e vir, de falar. Queremos ser escutados.
São todos necessidades e desejos genuínos do viver humano. Os budistas, porém, acreditam que todo o sofrimento que experimentamos reside no apego a nossos desejos e expectativas. Por isso, procuram viver de forma absolutamente despojada, sem qualquer apego que poderia levar mais uma vez, segundo eles, a uma vida de sofrimento.
Penso que, talvez, apenas talvez, na ânsia de realizar tantos desejos, muitos deles bem difíceis de ser realizados, tiramos o foco de nossa sobrevivência pura e simples. Esquecemos de cuidar das coisas que consideramos mundanas demais para nossa “missão de vida” e, ao fazer isso, adoecemos. Doenças que, sem nos darmos conta, acabamos por provocar por meio de um estilo de vida que luta contra a própria natureza do viver. Porque para realizar certos desejos, “não medimos esforços”, quando, na verdade, deveríamos medi-los, pois podem ser mais do que nosso corpo é capaz de aguentar. E se olharmos para a natureza, da qual não somos separados, as “decisões” que ela toma são sempre orientadas pelo caminho mais simples e fácil. O rio não fica batendo na pedra até furá-la. Ele a contorna. Os animais escolhem viver próximo de fontes de alimentos para não precisarem gastar mais energia do que o necessário. Tudo na natureza se orienta pela otimização. A lei da selva é a lei do mínimo esforço possível.
Se há uma missão incontestável da vida é a conservação do bem-estar. É seguir vivendo. Este é o nosso mandato biológico, que, muitas vezes, deixamos de lado para cuidar de outras coisas que consideramos mais relevantes. E eu pergunto: o que pode ser mais relevante para um ser vivo do que seguir vivo?
Aprendi que, quanto mais pesado um cachorro, menos tempo de vida ele terá. Há exceções, claro. Mas o fato é que o São Bernardo Bartô, que atingirá mais de 90kg, dificilmente viverá mais do que 8, 9 anos. Maya, como qualquer Golden Retriever, tem uma expectativa de vida entre 10 e 12 anos. E Nino, o pequeno Lhasa Apso, já está no lucro. Embora conheço relatos de cachorros dessa raça que vivam 18, 19, até 20 anos, Nino está em seus últimos dias. Já não come direito. Mal bebe água. E nos seus olhos vejo a serenidade de quem sabe disso.
De modo semelhante a nós humanos, cachorros parecem viver sem dar a menor importância a quando ou como vão morrer. Mas diferentemente de nós humanos, cachorros não realizam atividades que atentam contra a própria vida. Se estão com fome, comem. Se estão cansados, dormem. Se precisam fazer xixi ou cocô, não esperam o momento certo, vão lá no seu canto e fazem. E brincam muito. Não guardam rancores. Não controlam sentimentos. Sabem que o sentido da vida é simplesmente viver. E o fazem com graça e maestria.
Cachorros ensinam sobre o sentido da vida.
Os mais velhos ensinam sobre o sentido da vida.
As doenças ensinam sobre o sentido da vida.
Nosso corpo ensina sobre o sentido da vida.
A arte, com sua linguagem menos lógica e racional, ensina muito sobre o sentido da vida.
A vida, em suas múltiplas manifestações, nos ensina o tempo todo qual é o seu sentido, ou seus sentidos. Mas é preciso estar com os ouvidos abertos para escutá-la. Não só isso. É preciso reconhecer que, antes de qualquer missão de vida que se proponha a mudar ou a salvar o mundo, está a missão da própria vida, que é a conservação do seu bem-estar, de sua saúde física, mental e emocional.
De vez em quando, vale a pena parar tudo o que está fazendo, fechar os olhos por um momento, respirar algumas vezes e se perguntar se o que você tem feito com sua vida está contribuindo ou não para conservar seu bem-estar, ou seja, seu viver. Sempre é bom lembrar que, morto, ninguém, até mesmo um ser humano cheio de “missão de vida”, é capaz de realizar mais nada. Pelo menos, não neste plano em que estamos todos vivos.
P.S.: Após escrever este texto e antes de publicá-lo, Nino deu seu último suspiro e partiu. Sim, ele sabia.