Conversa com o espelho

domingo, 23 agosto 2020, 00:41 | Tags: , , , | Comentários desativados em Conversa com o espelho
Postado por Fábio Betti 

Ei, você aí, você mesmo que está a me olhar. Que cara de desconfiado é essa? Que dificuldade é essa de me encarar? Olha nos meus olhos. Isso! Lá no fundo. O que você vê? Conta pra mim.

Vejo um rosto. O rosto de um velho. Rugas, pele cheia de vincos, marcas do tempo. Barba por fazer. Cabelos rarefeitos. Boca pequena. Lábios apertados, que, ao se abrirem, mostram dentes que já foram mais brancos.

O que mais? O que mais você vê quando olha bem nos meus olhos?

Vejo um azul da cor do mar, só que mais pálido. Um mar sem ondas. Escurece. Vejo névoas. Uma criança brincando na rua. Ela está escalando um monte de areia. Quando chega ao topo, senta-se e, por um instante, parece me ver. Olha para mim, curiosa. E aí, valeu a pena?

Não sei o que dizer… Fecho os olhos por um segundo. Respiro fundo. Passo minha vida mentalmente. Passam flashes rápidos. Tento montar uma narrativa, mas faltam pedaços. Como um quebra-cabeças cujas peças se espalharam pelo chão. Não consigo montá-lo, falta-me tempo – respondo a ela.

Não precisa. Só me conta: valeu a pena? A vida, valeu a pena?

Ah, a vida! Boa pergunta. Primeira vez que me fazem. Se valeu a pena? Nunca pensei nisso. Me dá um tempo.

Mas você tem tempo?

Não sei. Tenho? Talvez não.

Então, sem pensar muito: valeu a pena?

Eu preferia não pensar nisso.

Por que?

Eu teria que me lembrar de tudo o que vivi. Fazer um balanço entre o que foi bom e o que não foi. E mal me recordo do que comi no café da manhã.

Não precisa pensar. Só responda: valeu a pena?

Assim, sem pensar, eu diria… nossa, o que eu diria? Vivi uma vida longa. Passei por crises profundas. Algumas só minhas. Algumas divididas com o mundo. Tive amores. Algumas decepções. Conheci mais gente do que minha memória é capaz de guardar. Pessoas queridas se foram. Viajei. Percorri o mundo transportado por carros, aviões e livros. Exerci profissões diversas. Me desnudei inúmeras vezes em praça pública sem medo ou pudor. Dancei sem vergonha, no ritmo, meu ritmo. Pilotei carros, motos, cavalos. Experimentei comidas exóticas. Preparei meu próprio alimento. Dormi em redes e camas de colchão duro. Sonhei sonhos épicos esquecidos assim que acordei. Construí castelos de areia. Pulei ondas. Lutei contra moinhos de vento. Venci batalhas imaginárias. Morri e renasci incontáveis vezes. Ainda sigo aqui.

Difícil colocar qualquer valor em tudo isso. Porque a pergunta “valeu a pena?” pressupõe isso, não? Um valor. Mais precisamente, pressupõe contrapor um valor diante de uma pena – e pena que quer dizer castigo, punição, condenação.

Não consigo olhar para a vida que vivi e botar um valor, muito menos enxergar nela qualquer pena. Definitivamente, não foi uma pena. Foi uma dádiva. Um presente.

Pena é se não puder estender a vida um pouco mais. Seria um castigo não poder mais acordar com os raios do sol entrando pela janela. Não dormir ouvindo o barulho do vento forte açoitando as árvores. Não sentir na pele o frio do inverno e o calor do verão, cada estação produzindo sensações tão particulares e intensas. Não saborear a suculência dos caquis maduros e a acidez açucarada das amoras. Não jogar conversa fora, nem se perder em papos-cabeça intermináveis. Não tomar banho de mar, nem mergulhar entre peixinhos coloridos e corais de tudo o que é forma e tamanho. Não ouvir a algazarra ensurdecedora das maritacas. Não assistir a filme romântico agarradinho e comendo pipoca. Não mergulhar num bom livro e só sair depois de terminá-lo. Não cozinhar sopas, moquecas, salmão com crosta de ervas, não assar pães e bolos.

Pena mesmo é não ter vivido tudo isso para poder sentir falta quando não puder estender a vida um pouco mais.

Então me diga, você mesmo que está a me olhar enquanto escrevo e chegou até aqui comigo: E pra você, a vida, valeu a pena?

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