Liberdade engaiolada

quinta-feira, 27 agosto 2020, 22:38 | Tags: | Comentários desativados em Liberdade engaiolada
Postado por Fábio Betti 

Além de milhares de vidas, a pandemia nos tirou a todos, indistintamente, a liberdade. A uns, a liberdade de ir e vir, aprisionados repentinamente em suas casas. A outros, trabalhadores de serviços considerados essenciais, a liberdade de escolha, obrigados à exposição ao vírus sob o risco de perderem emprego. E a tantos mais, a liberdade de garantirem a sua sobrevivência, engrossando o caldo gigantesco de desempregados Brasil a fora e dependendo de esmolas do governo e da ajuda dos amigos e familiares para seguirem acreditando. Mas acreditado no que? Só eles sabem. Eu só sei que a liberdade, como tudo o que deixa de existir, tornou-se joia rara, cobiçada, às vezes até contrabandeada. Muita gente dá um jeito de burlar a prisão involuntária inventando histórias para si mesmo de que o mundo voltou ao normal. Ou se não voltou, já deu, né? Deu o que? Pergunto. Será que deu mesmo para aprender algo com, dizem alguns, esse castigo dos deuses? Sei não, sei não.

Aproveitei a pandemia para mudar de endereço. Troquei o conforto e a comodidade de um apartamento bem localizado em São Paulo pelo ar fresco e pelo mato do interior. O barulho dos carros e o agito dos passos apressados deu lugar ao canto dos pássaros e à tranquilidade de uma cidade do tamanho do bairro de Santo Amaro. A tranquilidade é garantida pelo escorrer lento dos dias, guiados pelo movimento do sol, dos ventos e das chuvas, que definem se haverá ou não trabalho a fazer e em que momento ele deve acontecer. Trabalho no campo é assim, quem manda é a mãe natureza.

Me acostumei a acordar e a dormir cedo. Desperto com os raios do sol invadindo o quarto e a algazarra ensurdecedora das maritacas. Deito quando um silêncio profundo se instala convidando ao descanso.

Onde moro, os pássaros nascem livres. Alguns deles, no entanto, possuem um canto tão lindo que se tornam a cobiça dos homens. Reza a lenda que alguém trocou um carrão zero quilometro por um curió. Pesquisei e descobri que tem realmente quem pague mais de R$ 100 mil para ter o bichinho na gaiola.

A natureza fabrica animais, árvores, rios, mas não gaiolas. Gaiola é uma invenção humana para privar um outro ser de sua liberdade. Para fazer de um ser vivo um objeto de propriedade de outro ser vivo. Na natureza, tudo o que é vivo pertence a si mesmo. É, portanto, livre. Na época da escravidão, até gente era colocada dentro de gaiolas. Hoje em dia, elas só servem para outros tipos de bichos. Como o curió que, mesmo privado da liberdade, misteriosamente ainda segue cantando.

Mas se o homem deixou de prender outros homens em gaiolas, nem por isso as gaiolas deixaram de prender os homens.

Os homens também fabricam gaiolas sem grades. Gaiolas que aprisionam mentes.

Tem a gaiola do preconceito, que impede de ver o mundo como ele é.

A gaiola da educação, que ensina a obedecer sem questionar.

A gaiola de ouro, que transforma pessoas aparentemente inteligentes em escravas do trabalho.

A gaiola da desconfiança, que sufoca a quem mantém cativo.

A gaiola do amor romântico, que acorrenta pelas expectativas.

A gaiola do medo, com seu poder paralisante.

Mas a pior de todas ainda é a gaiola da verdade. Além de causar surdez e cegueira, ela pode transformar cidadãos de bem em assassinos psicopatas, que matam sem medo e sem dó qualquer um que questione a sua verdade que é, obviamente, a única e definitiva.

A gaiola da verdade é tão grande que consegue abrigar a população de um país inteiro, ou até de um continente. Dotada de um curioso mecanismo auto regulador, nem carece de carcereiros. Os próprios prisioneiros cuidam da seleção de quem merece viver e de quem merece morrer.

Ela é a mais terrível das gaiolas porque quem vive nela, como acredita que está sempre certo, pensa que é livre e, por isso, jamais saberá o que é de verdade a liberdade, porque se a experimentou um dia, nem se lembra mais. A maioria, inclusive, já nasceu dentro dela.

Certa vez, cavalgando numa trilha nas montanhas, achei um pica pau caído. Aparentemente, ele estava com a asa quebrada e não conseguia voar. Decidi levá-lo comigo. Coloquei-o numa caixa de papelão e nada de ele aceitar a água e a comida que lhe oferecia. Fui dormir e, no dia seguinte, encontrei-o durinho deitado no fundo da caixa. Fiquei triste, pois, apesar de meus esforços, não fui capaz de salvá-lo. Em outra ocasião, um pequeno beija-flor ficou preso dentro de minha casa. Ele voou, voou e voou até que não aguentou mais e pousou no chão. Me aproximei devagarinho e o segurei pelas mãos. Levei-o para fora, abri a mão e nada. Ele seguiu quietinho, pousado na palma de minha mão. Por um momento, temi que ele tivesse o mesmo fim do pica pau. Aproveitei para tirar uma foto e registrar a beleza ímpar daquele ser tão frágil e pequenino. Caminhei com ele para longe dos cachorros e o coloquei delicadamente sobre a grama. Não deu nem um segundo e o beija-flor bateu as asas e desapareceu por entre as árvores. Mesmo pousado sobre minha mão, ele precisou respirar por um momento para poder voar de novo livre e solto como todo pássaro sempre deveria ser.

Gaiolas nunca deveriam ter sido inventadas. Nem as gaiolas de grades, nem as gaiolas mentais. Porque todo ser humano nasceu para ser livre. Como os pássaros.

Mas só quem sente a falta que a liberdade faz é capaz de voltar a tê-la. E para sentir, é preciso respirar, esvaziar a mente um pouco dos aprendizados do passado e os sonhos e expectativas de futuro, que são basicamente do que gaiolas são feitas. Respirar para tomar contato com o que de fato importa. Sentir a saudade da liberdade. Porque a saudade alimenta o desejo. E o desejo é o que faz todos os homens e pássaros voarem de novo livres e soltos como sempre deveriam ser.

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