Caminho de volta

sexta-feira, 28 agosto 2020, 10:17 | Tags: , , , , , , , , , , , , | Comentários desativados em Caminho de volta
Postado por Fábio Betti 

Um ritual que acontece em minha família já há muitos anos é cremar nossos mortos e renascê-los como árvores. As árvores que eles mais gostavam em vida. Como sou apaixonado por elas – já plantei certamente dezenas -, brinco que só posso partir quando me decidir, o que obviamente ainda irá levar muito tempo.

Minha mãe é um ipê, que ainda não floriu. Meu pai, um caqui, que ainda não produziu os frutos que ele tanto gostava e que eu só fui mesmo me apaixonar depois que ele se foi. Meu sogro, um plátano, mirradinho mas simpático como ele só. E minha sogra, a última a compor nosso jardim do renascimento, adorava manacás e teve a sorte de partir numa época em que eles florescem. Já renasceu florida. Justo. Seu nome era Florinda, embora ela preferia ser chamada de Flora.

Rubem Alves, a quem considero meu muso inspirador, também amava as árvores. Ele dizia que “todo jardim começa com um sonho de amor. Antes que qualquer árvore seja plantada ou qualquer lago seja construído, é preciso que as árvores e os lagos
tenham nascido dentro da alma. Quem não tem jardins por dentro, não planta jardins por fora e nem passeia por eles…” Quando olho de onde viemos e vejo árvores resistindo aos séculos, gosto de pensar que já fui uma delas e que um dia voltarei a sê-lo. E as procuro cultivar fora e dentro de mim.

Tanto fora quanto dentro, me encanta a diversidade. Porque se existem árvores que dão frutos maravilhosos, doces como o caqui e a manga, ácidos como as laranjas, os limões e abacaxis, exóticos como a atemoia e a lixia, há aquelas que colorem os céus como os ipês e as que o escurecem, como os chapéu de sol, nome perfeito para esta árvore típica de regiões litorâneas que está sempre pronta para nos oferecer a paz de suas sombras acolhedoras. Há ainda as que produzem chás considerados medicinais, como a Moringa e a Pata de Vaca e tantas outras que os indígenas, verdadeiros guardiões da nossa terra e profundamente conhecedores de seus poderes, usam para a prevenção e cura de tantas enfermidades.

E há também muitas outras que não fazem nada disso, mas são tão belas que sou capaz de ficar o dia inteiro admirando-as. Como a Juniperus chinensis torulosa, mais conhecida como kaizuka. O nome científico imponente faz jus a essa árvore que os japoneses nos deram de presente e que se retorce em direção aos céus como se fosse um redemoinho congelado em seu movimento imperceptível. Quando compramos as duas mudas que plantamos, uma de cada lado da entrada da casa, nos ensinaram que, sob qualquer hipótese, deveríamos podá-las. Sensíveis, podem morrer sob o toque frio do metal. E aí, os japoneses que entendem como ninguém como cuidar de plantas, nos contaram que, para que ela ganhasse corpo e volume, bastava que, de tempos em tempos, quebrássemos com os dedos os ramos mais altos. Fizemos isso disciplinadamente, enquanto observámos as pequenas mudas se incorporando. Até que já não mais os alcançávamos e elas seguiram por conta própria sua vocação de árvores elegantes e frondosas.

O educador Tião Rocha descobriu há mais de 30 anos que era possível levar a escola para debaixo do pé de manga, com todos em roda, sem currículo fixo, sala de aula ou hierarquia. Embora essa proposta ainda pareça revolucionária, Tião falava da melhor forma de aprender: na natureza e uns com os outros, ao invés de separados do mundo natural do qual pertencemos e tendo na figura do professor e dos livros e teorias que ele traz os únicos repositórios de conhecimento. Como bem lembrou Guimarães Rosa, que Tião conhece como ninguém, “mestre não é quem sempre ensina, mas quem de repente aprende”.

Penso o quanto aprendo com a kaizuka, especialmente sobre meu papel de educador, seja como pai, seja como consultor e escritor. Como a rigidez fria de minhas convicções pode podar o desenvolvimento do outro e que, de vez em quando, também preciso torcer delicadamente alguns ramos para que o outro possa se fortalecer e reencontrar seu próprio rumo de crescimento. Parece uma escolha do tipo entre a cruz e a espada, e, às vezes, de fato é, especialmente quando não estou em meu centro, longe de minha vocação de educador. E outras, sinto que nem escolha é, se eu conseguir escutar genuinamente a mim e ao outro nessa relação onde ambos se transformam na convivência. Na presença dessa conexão profunda, basta fechar os olhos para o caminho se materializar a nossa frente.

Gosto de escrever cercado das árvores que plantei. Elas me contam histórias que meus ouvidos não são capazes de escutar, mas que fluem através do meu corpo para as palavras que, em diversas ocasiões, brotam sem parar. Lembro-me de ter contato pela primeira vez com essa escrita compulsiva na década de 80, quando um professor me apresentou a Jack Kerouac, Allen Ginsberg e William Burroughs, expoentes do que ficou conhecido geração beat ou movimento beat. Além do estilo despojado e essa escrita aparentemente sem qualquer freio, o que me encantou neles foi a ênfase em experiências pessoais viscerais e a busca por um entendimento espiritual mais profundo, algo que, sem pensar muito, observo no que escrevo, especialmente depois que me releio. Quando minha escrita vem nessa forma de correnteza, chego a me surpreender com sentidos que eu não percebi terem sido colocados ali. As pessoas que me leem falam de outros tantos significados que, ao ler o texto uma vez mais, também acabo por identificar.  

Tudo isso me leva a crer que, às vezes, consigo mesmo escutar as árvores, os pássaros, o vento e tudo o que está ao meu redor no único lugar onde podemos conversar sem qualquer censura ou julgamento: o inconsciente. É ali, onde reside toda a memória do que já fui, que todos nós, seres vivos que viemos exatamente da mesma fonte biológica, somos capazes de dialogar sobre sentidos que nossa mente nem sempre é capaz de capturar mas que uma escrita que se proponha a observar com olhos leves e, ao mesmo tempo, dedos rápidos, talvez seja capaz de revelar.

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