Presentes ocultos

domingo, 30 agosto 2020, 13:13 | | Comentários desativados em Presentes ocultos
Postado por Fábio Betti 

Uma cliente me convidou para fazer uma palestra. Desde que perdi a vergonha de falar em público – o que só ocorreu mesmo perto dos 30 anos -, passei a gostar bastante de levar minhas reflexões e provocações a um grande número de pessoas por meio desse canal. Aí me lembrei de que ainda estou recuperando minha voz. Será que ela estará boa o suficiente para que as pessoas consigam escutar o que tenho a dizer?

Fui um adolescente extremamente tímido. Nos trabalhos em grupo, eu não me importava em fazer o trabalho sozinho, desde que não precisasse apresentá-lo para a classe. Ficava trancado em casa lendo livros e escrevendo poemas dedicados a meninas que nunca os receberam e sequer souberam de minha paixão por elas. Ganhei dos garotos da vizinhança o apelido de borboleta, pois diziam, diferentemente de meu irmão, super popular no bairro,  queeu nunca saía do casulo. Faltava-me coragem para enfrentá-los. Não é borboleta, é crisálida – retrucaria com propriedade. Crisálida é o nome do estágio entre a larva e a borboleta. É ela que fica no casulo. Borboleta é esse ser maravilhoso que voa com elegância, sem esforço, exercendo sua vocação, borboleteando por aí sem saber de sua vida curta.

A crisálida só saiu do casulo empurrada. Tinha 26 anos e trabalhava na área de Comunicação de uma multinacional. Meu chefe me pediu para preparar as “transparências” de uma palestra que ele faria no dia seguinte na Unicamp. O tema era meio ambiente, que sempre me fascinou. Fiz o melhor que pude e, ao final do dia, na hora de entregar-lhe o material finalizado, ao invés de elogios, ouvi: “Betti, estou com um problema em casa, você vai no meu lugar”. Gaguejando, tentei argumentar que nunca havia feito uma apresentação em público, que era tímido, funcionava melhor nos bastidores, ao que ele retrucou: “Será bom para o seu desenvolvimento.”

Assim, morrendo de raiva e de medo, lá fui eu no dia seguinte para o matadouro. Convidei um colega mais jovem para me acompanhar como testemunha de minha imolação pública. Antes de iniciar a cerimônia de sacrifício, ele me mostrou onde sentaria e propôs que eu olhasse em sua direção a qualquer momento que me sentisse nervoso. Não é preciso dizer que fiz a palestra sem despregar os olhos do colega. E o que ele fazia enquanto eu o olhava? Sorria, fazia sinal de positivo e gestos sinalizando calma. Ninguém fez qualquer pergunta ao final, o que confirmou o fracasso da palestra, mas, contrariando minhas expectativas, sobrevivi. Graças a esse amigo que me ensinou de um jeito muito simples a importância de práticas de controle emocional para lidar com situações estressantes – uma busca que definiu minha vida até então. E meu chefe tinha razão, mas só depois de passar pela experiência consegui entender o que ele queria dizer por ser bom para meu desenvolvimento.

Ao longo de minha vida, recebi muitos presentes assim. Vinham embalados em papel lixa e amarrados em arame farpado. Devidamente desembrulhados, revelavam-se joias preciosas.

No ano que minha mãe se foi, encontrei a mulher com quem iria me casar e me dar as duas joias mais valiosas de todas, meus filhos.

Depois de perder meu pai, pude reconhecê-lo em muitas qualidades preciosas em mim, como o bom humor, a empatia e a generosidade.  

Meu sogro partiu e me ajudou a ver Deus em coisas simples como a chuva caindo e as plantas crescendo e se modificando de acordo com as estações.

Já na quarentena, a passagem de minha sogra reforçou em mim o prazer de cozinhar, algo que ela fazia com maestria.

No dia 27 de outubro de 2004, eu e meu filho mais velho assistíamos a uma partida de futebol no estádio do Morumbi, quando repentinamente um jogador do São Caetano desabou na área. Passados alguns minutos, a notícia: Serginho havia sofrido um ataque cardíaco fulminante. Este triste fato nos propiciou talvez uma das conversas mais importantes que tivemos entre nossa relação de pai e filho. Na época, eu estava com 38 anos. Ele tinha 7.

– Pai, ele morreu mesmo?

– Sim, Gabriel, morreu.

– Quantos anos ele tinha?

– 30 anos.

– Mas não são só as pessoas velhas que morrem?

– Não filho, qualquer pessoa pode morrer a qualquer momento.

– Você também, pai?

– Eu também.

Até hoje, lembro-me desse diálogo e da cena do jogador caindo na pequena área. Não sei o quanto esta história influenciou a vida de meu filho. Sei que ele resolveu seguir a carreira de medicina e eu aprendi a viver perdas como presentes.

Perdi minha tireóide e minha voz – e ainda não sei ainda se irei recuperá-la a tempo de fazer minha palestra -,mas desbloqueei meu lado escritor, na forma de um fluxo quase que compulsivo, presente em todos os dias de minha vida desde o dia da alta do hospital.

Quando comentei nas redes sociais o desafio que estava vivendo, alguém comentou que também teve que retirar a tireóide, também ficou sem voz, também dependia dela para trabalhar. Emendou com um “nunca mais a recuperei, embora fale.” E quando eu ainda estava sob o impacto desta frase, finalizou com um “força e fé!!!”

Ao olhar para minha história de vida e por tantos presentes ocultos que recebi, fiquei com vontade de agradecer a essa pessoa por mais um, que ainda veio com essas três exclamações ao final, para não ter restar qualquer dúvida de que é, de fato, um presente, um presente daqueles!!!

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