Protagonismo possível

quarta-feira, 02 setembro 2020, 22:49 | | Comentários desativados em Protagonismo possível
Postado por Fábio Betti 

Dizem que falo demais da morte. Meu tema, na verdade, é a vida. Da qual faz parte a morte. A morte final e as menores, presentes no cotidiano e nem sempre percebidas. Não há como falar da vida sem falar dela, ou delas. Assim como, para falar de coragem, precisamos falar do medo. E falar da vida é falar da forma como lidamos com a morte, porque é preciso superar o medo da morte para assumir a vida com a coragem que ela exige.

Gosto de imaginar que somos surfistas. Alguns ficam da praia olhando para as ondas, à espera de que o mar os convide a entrar. Outros permanecem sentados na prancha aguardando a onda perfeita. Alguns ainda tentam pegar a primeira onda que aparece. O fato é que as ondas vão e vêm, sem se importar conosco. E, quando finalmente parece que conseguimos domar uma onda, alterar seu rumo, guiá-la para nossos próprios interesses, ela mostra quem está mesmo no comando, seja nos engolindo com sua fúria, seja simplesmente virando espuma.

Será que somos mesmo capazes de alterar o curso da vida por meio de nosso livre arbítrio?

Eis uma pergunta que os filósofos se fazem desde sempre. Não vou citá-los aqui só para justificar minha linha de raciocínio. Aprendi que podemos falar por nós mesmos, ser filósofos de nós mesmos, pesquisadores de nós mesmos. Aprendi com um cientista que, paradoxalmente, já citei tantas vezes, mas desta até ele decidi poupar.

Como parte do mundo natural, carregamos em nós as coerências da natureza. E a natureza é isso mesmo: coerente. Somos nós que, quando não entendemos o que se passa nela, que criamos a narrativa do caos. Inventamos a palavra caos para explicar o que não conseguimos explicar.

Não existe caos na natureza. Tudo se autorregula, mesmo quando não percebemos isso. Assim como nosso corpo. As doenças, por exemplo, são uma resposta coerente de nossa autorregulação, inclusive quando nos levam ao fim de nossa vida. Não existe crueldade na natureza. Coitadinho, morreu tão cedo! Isso é nós que dizemos. A natureza apenas faz seu trabalho incansável de existir, criando e sustentando um ciclo contínuo de mortes e renascimentos. Às vezes, somos simplesmente a bola da vez. Pode ser doloroso de ouvir, mas não há nada muito nobre nisso. Quando alguém morre, a vida não faz uma grande cerimônia, não reverencia a nada ou a ninguém, como nós fazemos a pessoas que nos são caras. Talvez vivamos em grande parte, inclusive, para elas. Para que um dia elas celebrem a nossa partida em alto estilo. Queremos deixar nosso legado, nossa marca. E nos sacrificamos em nome desse objetivo. Muitas vezes, sacrificamos a própria vida.

Será que há outro lugar para atuarmos como protagonistas neste enredo sobre o qual não temos qualquer controle sem sermos heróis ou mártires, personagens que normalmente se vão cedo?

Primeiro, um passo atrás. Por que a necessidade de sermos protagonistas? Em sua origem, protagonista quer dizer primeiro (protos) ator (agonistes) ou competidor (agon). A vantagem de ocupar este papel é atrair a atenção de todos para você. E a desvantagem também. O seu impacto no mundo é certamente notado. Se você gosta de atenção, este é o papel certo. Mas o pacote vem com vigia permanente e julgamento externo. Vale a pena? Só você poderá dizer.

Mas insisto… será que, dado a natureza sendo o que é, nós realmente podemos exercer um papel de protagonistas? Pois eu penso que sim.

Este lugar de protagonista possível chama-se aceitação e entrega. O protagonismo de aceitar o que a vida é e se entregar a seu fluxo. Estas também são escolhas. Porque podemos, pelo contrário, escolher enfrentar a vida como se ela fosse algo hostil. Ir de encontro às ondas ao invés de surfá-las.

Quando uso a metáfora do surf, fica mais fácil entender a estupidez intrínseca à escolha de lutar contra a vida, mas, provavelmente, em grande parte da vida é exatamente isso o que acabamos fazendo. Chegamos a ter orgulho quando completamos qualquer travessia nadando contra a maré. Mesmo que isso quase nos custe a vida. Mesmo que tenhamos despendido muito mais energia do que devíamos. Com isso, provamos a nós – e aos outros, a quem esperamos um dia que nos preparem uma linda cerimônia de despedida onde seremos louvados como heróis ou mártires – que ganhamos da vida. Fazemos isso sem nos darmos conta de que o único personagem capaz de derrotar a vida é a morte.

Por outro lado, aceitar o que a vida é e se entregar a seu fluxo é uma maneira muito mais inteligente de se conduzir a vida, simplesmente porque ela não depende unicamente de nossa inteligência limitada, mas surfa na inteligência acumulada de bilhões de anos de experimentações e aperfeiçoamento contínuo. Porque ela reconhece o fato de que temos muito mais chances de viver uma vida mais longa e satisfatória quando nos aliamos a ela. Porque é um papel tão natural que não precisa nem de treino nem ensaio. E ao nos deixar longe dos holofotes, nos libera para surfar livres e soltos. Sem se preocupar em desempenhar um papel para alguém que nos julgue, podemos curtir cada onda como se ela tivesse sido criada única e exclusivamente para nosso próprio deleite. E quem pode dizer que não foi?

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