Guarda-roupa interno

quinta-feira, 03 setembro 2020, 08:43 | | Comentários desativados em Guarda-roupa interno
Postado por Fábio Betti 

Uma amiga me contou que estava diante de um grande dilema profissional. Ela vinha atuando como odontologista, porém nos últimos anos havia se interessado por muitas outras escolas terapêuticas e, mais recentemente, se tornou, segundo ela, obcecada pelas descobertas que ela própria e colegas de outras áreas haviam feito no campo dos tratamentos por frequência sonora e temia perder sua identidade ao ampliar suas atividades para bem longe de sua carreira inicial. Não só isso, já começava a enfrentar a ira de outros profissionais que a recomendavam para tratar a boca de seus pacientes e que passaram a enxergá-la como concorrente. Essa história suscitou uma longa conversa entre nós sobre um tema que costuma me provocar sentimentos controversos, porém, neste caso, surgiu cristalino como nunca à minha frente: o propósito.

Para início de conversa, “achar-se é construir identidades e desfazer-se delas”. Não me lembro exatamente o porquê, mas resolvi guardar esta frase do livro A Alma Imoral, de Nilton Bonder – quem me conhece sabe que sou um colecionador contumaz de frases. Agora finalmente ela me fez sentido.

Nossa alma, aquilo que temos de mais essencial se veste ao longo da vida de muitas roupas diferentes. De vez em quando, precisamos trocá-la, pois a roupa que estamos usando não nos cabe mais. No entanto, nos apegamos à roupa, acostumados a ela, seu corte, seu estilo, suas cores. E, mesmo que a sintamos apertada aqui e ali, que já a vemos com uma certa estranheza, deixá-la para trás soa como uma espécie de traição.

“O ser humano – seguimos com Bonder – é  talvez a maior metáfora da própria evolução, cuja tarefa é transgredir algo estabelecido”. Neste caso, porém, a transgressão é só com relação à roupa, posto que o que ela veste segue ali sendo o que é: nosso propósito mais essencial. Quando isso finalmente se esclarece, fica tão óbvio despir-se e experimentar o novo guarda-roupa, que enfrentamos qualquer crítica ou julgamento com uma serenidade que chega a nos surpreender. Sabemos, intimamente, que quem nos condena está enfrentando sua própria luta diante do convite da vida a mudar de roupa. E aceitamos mais facilmente as perdas do que ficou para trás. A identidade que nos trouxe até onde estamos não nos cabe mais, e com ela costumam ir também relações e certezas – coisas que precisamos para viver. Perdas que o arrebatamento pela nova identidade que nasce nos ajuda a superar. Porque, mesmo sem muita consciência, já mudamos de guarda-roupa muitas vezes e, portanto, novas relações e certezas virão. Nosso corpo sabe disso e nos joga com toda a força para fora das velhas roupas em direção à nudez que precisamos experimentar de novo, para poder encontrar, mais uma vez, a nova roupa que nos sirva.

Minha amiga se vestia de dentista, mas desde que a conheci, vi nela algo que transcendia a essa roupagem. Um certo dia, ela olhou para mim e, sem que eu pronunciasse uma única palavra, me disse: Hoje você não está bem. E desligou as luzes do consultório, pegou em minha mão e ficou em silêncio enquanto eu deixava que as lágrimas escorressem por meu rosto. Eu dizia a meus amigos que tinha uma dentista que também era psicóloga. E agora posso dizer que tenho uma amiga que cuida de pessoas. Apenas começou pela boca e agora integrou o corpo todo e, talvez, também a alma, fortalecendo ainda mais seu propósito de cuidar.

Penso que essa história também sirva para muitas outras roupas que não nos cabem mais, mas insistimos em ficar com elas, talvez com medo de enfrentar nossa própria nudez, talvez com medo de perdermos aquilo que aprendemos a amar. Mas amor de verdade nunca morre. Se é mesmo amor de verdade, muda de roupa, porque está vivo, crescendo, se transformando. Precisamos, porém, aceitar este fato, caso contrário, como uma roupa apertada demais, acabaremos por sufocá-lo.

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