Verdades mal-ditas

sexta-feira, 11 setembro 2020, 14:30 | | Comentários desativados em Verdades mal-ditas
Postado por Fábio Betti 

Vivemos num mundo que exige um posicionamento sobre tudo o tempo todo. Se não conseguirmos ser especialistas, precisamos pelo menos ter opinião formada sobre segurança pública, educação, religião, política, alimentação, cultura, saúde, moda, exploração aeroespacial, inteligência artificial e quantos mais forem os assuntos que surgirem em nossas telas e grupos de conversa. Recusa-se a se posicionar? Isentão! Alienado! Apático! Não sei você, mas eu já joguei a tolha. Sou mesmo um ignorante, e um ignorante convicto.

Se nos dermos conta de que o mundo que vemos é diferente do mundo visto pelo outro e que, portanto, cada um constrói sua realidade de uma maneira absolutamente particular, qual seria o sentido de entrar numa disputa para ver quem é o dono da verdade? A expressão “dono da verdade” é, inclusive, bastante apropriada. Afinal, sendo a verdade uma expressão construída socialmente a partir de perspectivas individuais e estabelecida como convenção, ela pode, sim, ter seu dono ou seus donos. Questão de coerência. O que eu vejo é verdade para mim, portanto, é a minha verdade.

O problema reside no fato de que não queremos ser donos apenas de nossa verdade, mas esperamos que ela seja a única verdade aceita. Tendo em vista que a população global gira em torno de 7,8 bilhões de pessoas, se toda a população do planeta resolvesse adotar essa postura, teríamos 7.799.999.999 de verdades invalidadas.

Como não conhecemos todas essas verdades, nosso poder de destruição acaba sendo limitado a nossas redes de relacionamento. Mesmo assim, pode ser bastante poderoso. Tão poderoso que destrói reputações, desfaz amizades, cria inimigos, num processo que, de maneira lenta e progressiva, vai nos deixando cada vez mais solitários, ao mesmo tempo em que reduz nossa visão de mundo a nosso próprio umbigo. O nome técnico desse processo seria auto-emburrecimento inconsciente. Afinal, quem em sua sã consciência escolheria esse caminho? Aposto que você já está se lembrando de várias pessoas para enquadrar nesse perfil. Aposto também que você esqueceu de incluir uma pessoa nesta lista. A mais importante. Você. Sim, você!

Você que, como eu, ouve alguém falando o que considera um absurdo e vai lá tirar satisfação.

Você que, como eu, anuncia que só vai dizer a sua verdade, quando na verdade vai é aniquilar o outro.

Você que, como eu, separa o mundo entre os bons e os maus, os de bem e os não de bem.

Você que, como eu, relativiza as outras verdades, escolhendo quais são válidas e quais não são, para que a sua prevaleça.

Você que, como eu, é tão apaixonado por suas verdades que só respeita o outro quando ele também parece cultuar as mesmas verdades.

Você que, como eu, está tão identificado com suas verdades que qualquer outra verdade que surja é imediatamente combatida sob o risco de você deixar de existir.

Você que, como eu, anda cego pelo mundo fingindo certezas que, no fundo do seu ser, suspeita que são meros castelos de areia.

Você que, como eu, sofre quando percebe pessoas que você gosta se distanciando com medo do mal que sua verdade fez ou é capaz de fazer a elas.

Você que, como eu, sente que o que você não sabe é infinitamente maior do que o que você sabe, ou melhor, acha que sabe.

Você que, como eu, está cansado dessa polarização que nos coloca, seres humanos constitutivamente amorosos, em campos opostos como se o outro tivesse que morrer para que pudéssemos sobreviver.

Você que, como eu, não sabe como escapar dessa armadilha que parece ter existido desde sempre.

Você que, como eu, é chamado de isentão, alienado e apático quando não se posiciona diante de algum tema que não domina ou simplesmente que não deseja comentar.

É com você que eu quero conversar. Pois também é comigo que tenho conversado. Incessantemente. Sem piedade. Conversar até que esse condicionamento emburrecedor comece a se dissolver e você, como eu, perceba que nada do que vê é uma verdade em si. E, quando isso acontecer, eu estarei aqui para lhe abraçar, para lhe consolar e dizer baixinho que está tudo bem. Não é nenhum defeito de fábrica. É assim mesmo que funcionamos, temos uma visão limitada, nos equivocamos o tempo todo. Nosso cérebro já se provou ser um tradutor meia boca mesmo. E a única explicação plausível é que somos assim para termos que nos relacionar uns com os outros.

Pronto. Pode vir. Estou lhe esperando. Vem receber meu abraço de irmão.

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