A essência da fala

quinta-feira, 17 setembro 2020, 00:32 | | Comentários desativados em A essência da fala
Postado por Fábio Betti 

Michelangelo dizia que para fazer uma escultura bastava retirar do bloco de mármore tudo que não é necessário. Simplesmente retirar tudo que não é necessário. Simplesmente. Segundo o que se sabe, esta é a palavra que ele usou. Para recuperar a corda vocal parcialmente paralisada, preciso aprender a retirar da minha fala tudo o que não é necessário. Para que fique só o que importa. Não há nada de simples nisso. Quando falo por longos períodos, fico sem ar. Quase desmaio. Em certa medida, isso ajuda, ficar sem ar. Não tenho alternativa. Ou retiro tudo o que não é necessário ou corro o risco de apagar no meio de uma conversa.

Entre todos os artistas, sempre cultivei uma admiração especial pelos compositores e pelos poetas, que sabem como ninguém se expressar em frases curtas, precisas. Eles que têm o poder de nos tocar com o que parece pouco. Só parece.

A palavra certa é bem mais cara do que a sentença longa. Custa chegar a ela. Quem diz que é só uma questão de inspiração não sabe o que diz. Inspiração vem do latim “inspiratio”, que significa “colocar o ar para dentro, inalar, inflamar”. Inspiração, portanto, é só o começo do processo criativo. Com o ar dentro, o cérebro precisa pensar para que, em seguida, o corpo exerça o seu papel e concretize a ideia. Aí então é a vez de transpirar. Transpirar significa agir através da respiração.

No mundo das ideias, tudo cabe, tudo é possível. Qualquer coisa pode ser imaginada. Só que nem toda imaginação vira ação. Para encontrar no mundo material uma tradução que faça jus ao que foi imaginado, só transpirando muito. E, quando isso acontece, a arte se manifesta em toda a sua precisão e beleza.

A ideia nasce com a inspiração e é transformada em ação pela transpiração. E uma ideia inspirada materializada em uma ação é música para os ouvidos, festa para os sentidos. Simplesmente, é pura arte.

Ninguém deveria ficar sem voz para ter que aprender a manifestar a arte de sua fala.

Ninguém deveria desperdiçar o seu tempo e o do outro com palavras desnecessárias.

Aprendi a escrever ainda adolescente lendo clássicos como Os Luzíadas, A Odisséia, Romeu e Julieta, Macbeth, Madame Bovary e Retrato de Dorian Gray, para citar de cabeça os primeiros livros que me vêm à cabeça. Mas também li muita literatura barata, de Sidney Sheldon a Harold Hobbins e Jacqueline Susann, intercalada por longos mergulhos nos romances enigmáticos de Agatha Christie e nos contos escabrosos de Edgar Allan Poe e Franz Kafka. A diferença entre tão diferentes mundos é a precisão com que o primeiro time conta suas histórias, sem subterfúgios estilísticos ou manobras semânticas.

Tentei fazer isso em diversos momentos de minha vida: não enganar o leitor com exercícios pirotécnicos. No entanto, quando olho minha trajetória, vejo muito mais o excesso do que a essência. O desnecessário parece necessário para a construção de uma relação entre o que fala/escreve e o que ouve/lê baseada na submissão e na idolatria. Assim, justifica-se a existência de gurus e discípulos, influenciadores e seguidores, pop stars e fãs. São todas relações de obediência e transferência de poder ao que usa sua fala/escrita como instrumento de dominação e não como ponte para a construção de entendimento comum.

Construir entendimento comum dá trabalho. Leva tempo para que as palavras ditas produzam o efeito desejado. Ainda mais quando a essência se perde em meio a tantas palavras desnecessárias. Como garantir que a intenção primeira foi capturada pelo outro? Pergunta errada. Não se pode garantir. Mas é possível aumentar as taxas de sucesso iniciando por escolher as palavras certas.

“Acho que mantive, por muito tempo, um pedaço do meu coração vazio, destinado especialmente para ela.” Escreve o japonês Haruki Murakami em “Sul da fronteira, oeste do sol”, um de seus livros mais belos e perturbadores. E continua lindamente sua fala expurgada do desnecessário: “Como uma mesa tranquila, no fundo de um restaurante, com uma discreta placa de ‘reservado’.”

Quando o essencial se manifesta sobre nós, temos tempo para respirar e, portanto, se inspirar, permitindo que o que ouvimos/lemos também transpire em nós nessa dança que vai da ideia à ação.

Quando o essencial se manifesta através de nós, criamos um espaço de conexão com o outro que nos escuta/lê, ampliando suas perspectivas de mundo por meio da visão inspirada que atingimos quando respiramos antes, durante e depois que falamos/escrevemos.

Nelson Rodrigues, que era mais conhecido pela acidez com que desnudava os podres de nossa sociedade, também tinha seus momentos de poeta. Certa vez, escreveu que  “a maioria das pessoas imagina que o importante no diálogo é a palavra. Engano. E repito: o importante é a pausa. É na pausa que duas pessoas se entendem e entram em comunhão.”

A voz que falha, a fala que cansa, o ar que falta me ensinam na marra a importância da pausa. A escrita aprendeu mais rápido. Tem a seu favor o tempo e a correção sem limites. A fala ainda engatinha. Aproveita o seu próprio silêncio para se reinventar mais enxuta, em comprimento e em ritmo, para que se retire todo o excesso que nos separa e reste simplesmente o necessário que nos une em torno do que nos é comum, o essencial.

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