Lógica, que vem do grego “Logike”, significa arte de raciocinar. Tem a arte de raciocinar sobre os seres vivos e tem a arte de raciocinar sobre tudo o mais que não é vivo. Cada uma tem sua lógica própria.
Sobre o que não é vivo, vale a lógica linear ou mecanicista. Existe uma única realidade. Uma cadeira é uma cadeira. Uma mesa é uma mesa. A realidade é o que é. Fazemos perguntas do tipo certo ou errado, verdadeiro ou falso. Soluções do passado ainda podem valer no presente.
Sobre o que é vivo, vale a lógica complexa ou orgânica. Muitas realidades diferentes podem coexistir. Uma pessoa é diferente de outra. A forma como uma pessoa vê o mundo é única. Precisamos compartilhar o que estamos vendo e combinar no que iremos acreditar para construir um significado que seja comum. Tudo é inédito o tempo todo. Mesmo que não pareça. Não adianta repetir a estratégia de educação bem sucedida aprendida com o primeiro filho. O segundo vem diferente. Você e seu cônjuge são diferentes. O contexto é diferente.
Sem a possibilidade de respostas binárias, navegar no mundo da complexidade exige capacidade de adaptação e desapego. É nesse lugar que está a empatia, essa emoção que se convencionou descrever como algo aparentemente impossível – a capacidade de se colocar no lugar do outro – e que tem estado tão em falta.
Este texto tem a presunção de explicar a lógica da empatia a partir de fenômenos aparentemente simples e comuns como a indiferença frente à morte de outros seres vivos.
A gente não deixa de se sensibilizar com a história de um animal silvestre que agoniza e eventualmente venha a morrer vítima de um incêndio na mata, de uma hora para outra, nem por acaso, de maneira isolada. Ninguém vai dormir impactado e acorda indiferente.
Antes disso, provavelmente, já perdemos a capacidade de nos sensibilizarmos quando alguém não tão próximo anuncia a perda de algum animal de estimação. Não importa se esse outro demonstra uma dor profunda pela partida do que, segundo essa pessoa, era praticamente um membro da família.
Protocolarmente, podemos até dizer que sentimos muito, mas só protocolarmente. Porque dentro não sentimos nada. Intimamente pensamos até o quão estúpido é chorar por um cachorro, gato ou qualquer outro bicho enquanto tantas crianças morrem de fome pelo mundo. É o que pensamos, mesmo que não digamos.
À essa altura, provavelmente já tenhamos perdido a capacidade de nos sensibilizarmos diante de outras situações difíceis vividas por esse outro ser humano. Esse outro que sofre, que se entrega à dor e à desesperança. Esse outro que talvez venha a morrer. Seja num incêndio na mata. Seja por causa de um vírus. Seja pelo que quer que for. Sobretudo, se esse outro é tão misteriosamente outro que facilmente é identificado como um inimigo. Alguém que, por meio de seus pensamentos, suas ideias, falas e ações ou, pelo menos, os pensamentos, ideias, falas e ações que somos capazes de ver e ouvir, nos ameaça. Nos ameaça de tal maneira que desejamos intimamente a morte dele.
Não se trata apenas de não sermos capazes de nos sensibilizarmos com sua desgraça. Sabemos, e este é o nosso segredo, que chegamos a celebrar intimamente esse destino. Mereceu! Bem feito! Dizemos para nós mesmos. Algumas vezes, até externamos esse pensamento, especialmente quando encontramos eco. Quando esse outro também é outro para outras pessoas que nos cercam. Nossa bolha nos protege do inimigo comum, amplificando nosso ódio mas também nosso medo.
Celebramos o sofrimento e talvez a morte deste outro. Este outro que nos incomoda de tal maneira que perdemos a capacidade de nos comover não só com sua história mas com as histórias de todos os outros, conhecidos ou não.
Penso – só penso – que a única maneira de romper esse ciclo é de fato cultivando o amor por esse outro que queremos morto ou que quer que nós morremos.
Muitos outros já disseram isso antes de mim. Alguns foram extremamente mal compreendidos em sua época. Tão incompreendidos que pagaram sua ousadia com a própria morte. Afinal, que ideia mais estapafúrdia: amar quem deseja a nossa morte!
O que aconteceria se todos nós passássemos a amar nossos inimigos?
Não restariam inimigos.
E o que seria de uma sociedade que aprendeu que o certo era ter nós e eles, que o certo era ter um inimigo para chamar de seu?
Assim é a evolução, nos ensinaram. Competindo uns com os outros, nos tornamos mais fortes, nos tornamos mais resistentes, nos tornamos mais capazes de enfrentar as agruras da vida.
E assim é. Se acreditamos que a vida é uma guerra, e uma guerra do tipo “resta um” travada entre seres vivo, é isso mesmo que temos que fazer. Eliminar todos os outros que nos ameaçam.
Mas se acreditamos que a vida em todas as esferas só existe em razão de um equilíbrio dinâmico entre “eu te deixo ser” e “você me deixa ser”, se acreditarmos que existe um princípio necessário de colaboração mesmo que inconsciente, é bom mesmo começar a pensar no que fazer para amar esse seu inimigo.
E eu vou lhe dar o caminho das pedras.
Este seu inimigo, este outro que, só pelo fato de existir, já se lhe apresenta como uma ameaça insuportável, é mais do que o que você está vendo. Ele é mais, muito mais do que aquilo que lhe ameaça.
Além de ele ter uma opinião política divergente da sua, esse outro talvez seja também um bom pai ou uma boa mãe ou, no mínimo, um bom filho ou uma boa filha.
Esse outro que lhe ameaça com suas ideias tão diferentes sobre os costumes, com seus julgamentos morais que lhe ofendem tanto, talvez seja também alguém que sai cedo de casa, tem que lidar com diversos desafios ao longo do dia e, quando regressa, coloca a cabeça no travesseiro e, com a consciência tão tranquila quanto a sua, reconhece que deu o seu melhor nesse exercício diário de trocar o tempo pela possibilidade de sustentar a si mesmo e a sua família.
Mesmo que esse outro talvez traga uma ideia que, por não se basear em nenhum fato ou nenhuma evidência que você aceite como tal, você julga que é um completo absurdo, ele também pode ser alguém que está vivendo um drama pessoal que você não conhece, um drama tão ou mais duro do que o que você está vivendo.
Este outro que tanto lhe ameaça pode estar passando por um momento difícil em seu relacionamento afetivo, pode ter perdido alguém próximo, pode estar ele mesmo vivendo uma situação de saúde muito séria.
Na hora em que você começa a refletir e abrir seu olhar para essas e outras possibilidades descritivas, para outras identidades que você oculta quando só tem olhos para o inimigo, como que por mágica você acabará por se ver refletido nele.
Ou você segue odiando-o e, portanto, terá que odiar a si mesmo, ou você finalmente poderá olhar a si mesmo por meio dele com um olhar curioso e apreciativo. Olhar com a gravidade exigida para esse momento de reencontro com a essência do humano. Desde esse lugar, desde esse fio que de repente se regenera, talvez você seja mesmo capaz dissolver o ódio em seu coração e, quem sabe, no coração do outro.