O pecado de amar demais

segunda-feira, 15 novembro 2010, 21:35 | Tags: , , , , | 3 comentários
Postado por Fábio Betti 

Outro dia, uma amiga me confidenciou que sofre de poliamor. Fiquei preocupado, não só em função do tom com que essa palavra – até então, desconhecida por mim – foi dita, mas, especialmente, com o que veio a seguir: “me apaixono o tempo todo, mas, para não trair meu marido, aprendi a comer com os olhos e lamber com a testa”.

Poliamor são relações interpessoais amorosas que recusam a monogamia como princípio ou necessidade. Trata-se de uma opção ou modo de vida que já existe nos Estados Unidos há mais de 20 anos e que defende a possibilidade prática e sustentável de se estar envolvido de modo responsável em relações íntimas, profundas e eventualmente duradouras com vários parceiros simultaneamente. Não é este o caso de minha amiga. Primeiro, porque não há consentimento e a confiança mútua de todas as partes envolvidas, ou seja, dela, do marido dela e da terceira pessoa, o que parece ser uma regra do poliamor. E segundo, porque ela já garantiu: ao invés de ir às vias de fato, ela fica só no desejo – “come com o olhos” – e na imaginação – “lambe com a testa”.

Se minha amiga não é praticante do poliamor, o que, então, ela é? Se ela desce vazão a seus desejos, seria promíscua. O fato de ela ser casada também a definiria como adúltera. Promíscua e adúltera são, portanto, os dois adjetivos que seriam facilmente utilizados pela grande maioria das pessoas para definir alguém, como minha amiga, que ama demais e pratica o que sente. Bastaria que ela seguisse a regra mágica de buscar o “consentimento de todas as partes envolvidas” para ser enquadrada como “poliamorosa”, algo que, em determinadas comunidades dos Estados Unidos, Alemanha e Inglaterra, é encarado com muita naturalidade.

Acontece que minha amiga não nasceu em nenhuma dessas comunidades. Como eu, como você, como a maior parte das pessoas que conheço, ela nasceu numa família católica, numa comunidade que pratica os valores judaico-cristãos e que, portanto, condena pessoas como ela à expiação pública. Na verdade, há duas maneiras para ela evitar a condenação social: a primeira é sendo hábil o suficiente para não ser descoberta em pecado; a segunda é não pecando, ou seja, sendo hábil o suficiente para viver sua poliamorosidade apenas no mundo da imaginação.

Comer com os olhos e lamber com a testa são atividades básicas do amor virtual, modalidade amorosa a que mais e mais pessoas têm se dedicado a cada dia. Como, nas comunidades judaico-cristãs, o sexo está relacionado à procriação e ninguém até hoje conseguiu procriar apenas na imaginação, o amor virtual surge como uma espécie de tábua de salvação para a culpa que costuma vitimizar os incapazes de controlar o seu coração e que ainda não tomaram a decisão de morar em uma comunidade onde o poliamor é permitido.

O fato de haver lugares onde o poliamor seja permitido deveria, por si só, já ser motivo de estranhamento – não o estranhamento pudico dos moralistas, mas o estranhamento de qualquer ser humano que, nascido naturalmente poliamoroso, deixa-se enrijecer a tal ponto que precisa de um lugar para se permitir ser o que é. Ou, então, vive na culpa por concretizar em segredo seu potencial amoroso ou, pior, deixa de vivê-lo, acreditando que, assim, foge da condenação, quando, na verdade, torna-se seu próprio carrasco.

3 comentários para “O pecado de amar demais”

  • Lisa disse:

    Ao ler o texto, identifiquei-me como uma poliamorosa.Mas, contrariando a tese, o amor virtual não preenche e não satisfaz plenamente…

  • Pode ser que, daqui a uns anos, já não seja preciso encontrar um sítio para ser poliamoroso/a… Trabalho para isso. 🙂

  • Fabio Betti disse:

    É o que, no fundo, todos queremos. Abraços, Daniel.

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