Um homem comum

sexta-feira, 26 novembro 2010, 07:10 | Tags: , , , | 6 comentários
Postado por Fábio Betti 

Um homem não nasce com a habilidade de discutir a relação. E, mesmo que aprenda ao longo de sua vida, ainda assim não fará parte dele, de sua essência, onde habita o silêncio turbulento das paixões inomináveis e dos medos inconfessáveis.

No princípio, era o verbo. E o verbo pertencia ao universo feminino. Enquanto os homens iam caçar, as mulheres ficavam na caverna cuidando dos filhos e… conversando, conversando, conversando o dia todo. Nas redes de conversações, as mulheres aprendiam umas com as outras, passavam o tempo se entretendo com as histórias que contavam e, encontrando muitos pontos de identificação entre elas, formavam uma comunidade unida e poderosa. Não é à toa que a psicanalista Regina Navarro Lins vive dizendo que, no início, eram as deusas.

Enquanto as mulheres conversavam entre si, os homens caçavam. E se alguém aqui já foi a uma caçada alguma vez ou, pelo menos, assistiu a um filme sobre caçadas, sabe tratar-se de uma atividade onde a conversa é terminantemente proibida. Alguém falou, o bicho escutou, já era! E voltar para casa sem o sustento da família era considerado uma verdadeira desonra. Macho alfa é macho provedor. Assim, os homens passavam o dia todo em silêncio, completamente focados e sob uma tensão que só se afrouxava quando seu objetivo era atingido.

O tempo passou, as mulheres hoje também saem à caça para garantir o javali de cada dia e muitos homens ajudam nas tarefas da caverna. Com uma divisão menos clara de papéis, os homens puderam exercitar algo que não estavam acostumados: o diálogo. Aprendemos a dialogar com as mulheres e, sendo bichos tão diferentes, mais discutimos do que dialogamos. E, quando discutimos, a vantagem da força física, tão útil na hora de caçar, não nos serve para nada – a não ser, claro, que partamos para a agressão, o que, convenhamos, é uma atitude primitiva demais para os dias de hoje. De forma contrária, o talento dialógico moldado ao longo de milênios, dá as mulheres uma vantagem praticamente impossível de ser superada no curto ou médio prazo. Precisamos ainda de alguns milhares de anos de prática intensiva para chegar ao nível das mulheres, mas, como elas também continuarão praticando, quando chegarmos ao nível atual, elas continuarão na dianteira.

Inteligente é a mulher que conhece essa história. E sábia ela se torna quando, numa discussão de relação, abre mão de sua superioridade na comunicação para diminuir a distância entre nós, domando a fala e abrindo a escuta. Não há outra forma para que as discussões de relação se transformem em diálogos. Claro que ao homem cabe também continuar treinando incansavelmente, mas, sem fazer parte de sua origem ou sua história, ele continuará tendo momentos de silêncio que tanto incomodam as mulheres. E para que elas entendam um pouco melhor o que se processa nessas horas, falo agora como um homem comum, um homem como outro qualquer, a quem, às vezes, também cansa discutir a relação. Há algo de sagrado nesse silêncio, por isso ele deve ser respeitado. Um homem se cala para recuperar o fôlego quando sente que está à beira do abismo ou quando toma contato com sentimentos que, de tão arrebatadores, nem mesmo ele sabe nomear.

6 comentários para “Um homem comum”

  • A sombra sonora do silêncio, disse Goethe sobre o mito de Ulisses.
    Kafka já escreveu lindamente sobre isso no texto que reproduzo abaixo (mesmo sob risco de estourar o blog):

    O SILÊNCIO DAS PALAVRAS – Franz Kafka

    Prova de que até os meios insuficientes – infantis mesmo – podem servir à salvação:

    Para se defender das sereias, Ulisses tapou os ouvidos com cera e se fez amarrar ao mastro. Naturalmente – e desde sempre – todos os viajantes poderiam ter feito coisa semelhante, exceto aqueles a quem as sereias já atraíam à distância; mas era sabido no mundo inteiro que isso não podia ajudar em nada. O canto das sereias penetrava tudo e a paixão dos seduzidos teria rebentado mais que cadeias e mastro. Ulisses porém não pensou nisso, embora talvez tivesse ouvido coisas a esse respeito. Confiou plenamente no punhado de cera e no molho de correntes e, com alegria inocente, foi ao encontro das sereias levando seus pequenos recursos.

    As sereias entretanto têm uma arma ainda mais terrível que o canto: o seu silêncio. Apesar de não ter acontecido isso, é imaginável que alguém tenha escapado ao seu canto; mas do silêncio certamente não. Contra o sentimento de ter vencido com as próprias forças e contra a altivez daí resultante – que tudo arrasta consigo – não há na terra o que resista.

    E de fato, quando Ulisses chegou, as poderosas cantoras não cantaram, seja porque julgavam que só o silêncio poderia conseguir alguma coisa desse adversário, seja porque o ar de felicidade no rosto de Ulisses – que não pensava em outra coisa a não ser em cera e correntes – as fez esquecer de todo e qualquer canto.

    Ulisses no entanto – se é que se pode exprimir assim – não ouviu o seu silêncio, acreditou que elas cantavam e que só ele estava protegido contra o perigo de escutá-las. Por um instante, viu os movimentos dos pescoços, a respiração funda, os olhos cheios de lágrimas, as bocas semiabertas, mas achou que tudo isso estava relacionado com as árias que soavam inaudíveis em torno dele. Lobo, porém, tudo deslizou do seu olhar dirigido para a distância, as sereias literalmente desapareceram diante da sua determinação, e quando ele estava no ponto mais próximo delas, já não as levava em conta.

    Mas elas – mais belas do que nunca – esticaram o corpo e se contorceram, deixaram o cabelo horripilante voar livre no vento e distenderam as garras sobre os rochedos. Já não queriam seduzir, desejavam apenas capturar, o mais longamente possível, o brilho do grande par de olhos de Ulisses.

    Se as sereias tivessem consciência, teriam sido então aniquiladas. Mas permaneceram assim e só Ulisses escapou delas.

    De resto, chegou até nós mais um apêndice. Diz-se que Ulisses era tão astucioso, uma raposa tão ladina, que mesmo a deusa do destino não conseguia devassar seu íntimo. Talvez ele tivesse realmente percebido – embora isso não possa ser captado pela razão humana – que as sereias haviam silenciado e se opôs a elas e aos deuses usando como escudo o jogo de aparências acima descrito.

    [KAFKA, Franz. O Silêncio das Sereias. Publicado na Folha de S.Paulo, domingo, 6 de maio de 1984.Tradução de Modesto Carone.

  • Fabio Betti disse:

    Chris, seu comentário (praticamente, um post, né?) me tirou um pouco de meu estado de silêncio e me transportou para a “Lenda das Sereias”, uma música de melodia gostosa interpretada por Marisa Monte e que traz uma visão mais romântica e delicada desses seres mitológicos de encantos irresistíveis…

    “Olha o canto da sereia
    Ialaó, oquê, ialoá
    Em noite de lua cheia
    Ouço a sereia cantar
    E o luar sorrindo
    Então se encanta
    Com as doces melodias
    Os madrigais vão despertar”

  • flavio sandro disse:

    Eu adoro esta melodia postada pelo Fabio , muito linda obrigado

    viagra

  • pablo disse:

    aqui em casa é ao contrario,quando temos um desentendimento,ela se cala por varios dias.sinceramente ainda vou adoeser por isso.

  • Dora disse:

    Sabe o que é engraçado, nisso tudo? E que quando nós, mulheres, resolvemos nos calar, eles também entram na nóia igualzinho à gente. Estão mal acostumados, porque temos o hábito de dar satisfação. Mas vá uma mulher se calar sem aviso prévio ou sem justificativa posterior, para ver se eles não enlouquecem também! Fico lembrando do relato de uma amiga minha que, cansada do silêncio do companheiro, resolveu fazer exatamente a mesma coisa. Sem prévia comunicação, entrou em retiro espiritual também. Rapidinho a pulga cresceu na orelha dele, e em pouco tempo o dito cujo já estava perguntando se ela não o amava mais. Prontamente, ela rebateu: “porque você está achando isso, fulano???” Ele gaguejou, se enrolou e não respondeu, porque assim que pensou na resposta, percebeu que essa mesma resposta seria usada contra ele. Óbvio!

    É… pimenta, no dos outros, é refresco.

    Se forem entrar em retiro espiritual, ao menos avisem antes, certo? Isso pode até não nos satisfazer completamente, mas ao menos a coisa fica menos sofrida para ambas as partes. E depois que a cabeça estiver aprumada, se o problema for conosco, digam, por favor. Se não for, e não quiserem revelar isso em palavras, ao menos demonstrem em atitudes, para que possamos interpretá-los com algum elemento mais sólido do que o simples silêncio sepulcral.

  • Fabio Betti disse:

    Muito obrigado pelo seu comentário, Dora. Abraços

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