Renascido para ser livre

sábado, 18 dezembro 2010, 11:38 | Tags: , , , , | Nenhum comentário
Postado por Fábio Betti 


Já vi a sombra da morte inúmeras vezes. A vi quando ela levou minha mãe, meus primos e até algumas crianças no período em que atuei como voluntário em um abrigo. Só que, nestas ocasiões, parece que ela não estava nem aí para mim, de tão ocupada com almas alheias. Até que, naquela noite, quando ela ultrapassou minha Shadow em alta velocidade, senti nossos olhos se cruzarem por um momento e ela se tornou tão estranhamente presente que o mundo a minha volta de repente começou a girar em câmera lenta…

A morte passou por mim, em 10 cenas:

Cena 1: Finalmente, resolvi estrear minha Shadow na estrada. Noite perfeita para a aventura: linda, fresca, estrelada.

Cena 2: Viajante solitário, paro no único semáforo da Raposo Tavares, quando se juntam a mim, de um lado, uma Fatboy – um dos maiores clássicos Harley Davidson – e, do outro, uma moto pequena carregando dois sujeitos.

Cena 3: Como convém aos amantes das duas rodas, cumprimentamo-nos todos com um discreto aceno de cabeça e, assim que o verde aponta no semáforo, as duas motos aceleram rápido e logo se distanciam de mim.

Cena 4: Acompanho-as visualmente, quando, sem qualquer motivo aparente, a moto pequena se desequilibra e vai ao chão. A Harley não consegue desviar e passa por cima da moto tombada.

Cena 5: A poucos metros de mim, motos e motociclistas se esparramam pela pista.

Cena 6: Vejo tudo em câmera lenta, no mais absoluto silêncio, a ponto de sentir meu coração suspenso. De acelerado, só as sinapses produzidas por meu cérebro em conluio com meus instintos. É como se eu tivesse todo o tempo do mundo, para que, num espaço não maior de 50 metros – é o que calculo que me separava da cena do acidente –conseguisse frear sem travar as rodas e sair costurando entre os corpos, motos e peças voando a minha frente.

Cena 7: Percorro uns 200, 300 metros e consigo chegar ao acostamento. Sinto como se tivesse atravessado um campo minado e deixado para trás uma cena de batalha onde sou o único sobrevivente. Meu coração finalmente resolve voltar a funcionar e agora parece querer sair pela boca.

Cena 8: Demoro segundos intermináveis para conseguir me livrar do capacete e, quando crio coragem e olho para trás, não vejo motos ou motociclistas, mas apenas um aglomerado de carros e luzes cercando o local onde eles deveriam estar.

Cena 9: Fico mais uns cinco minutos parado, respirando fundo e esperando o coração aquietar. O cérebro, que havia me salvado, agora não dá sinais de vida quando me pergunto sobre o que havia acabado de acontecer. Como consegui escapar? Por que fui poupado? O que tudo aquilo estava querendo me dizer?

Cena 10: Sem resposta para nada, coloco novamente meu capacete, ligo a moto, fecho os olhos quando ouço o ronco forte do motor, e acelero, acelero forte, enquanto a paisagem muda rápido a minha volta, pressentindo curvas e a estrada correndo dentro de mim. A moto e eu somos um só corpo. Estou só no mundo e isso me basta.

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