Algumas palavras e expressões verbais e não verbais parecem ter o poder de destruir qualquer forma de diálogo, transportando seus participantes do prazeroso e criativo conversar ao doloroso combate pelo direito de propriedade da verdade.
Em qualquer dicionário que se pesquise, diálogo sempre estará relacionando a uma conversa entre duas ou mais pessoas em busca de um entendimento. Gosto especialmente do significado que Humberto Maturana e Ximena D’Ávila, fundadores da Biologia-Cultural, dão ao diálogo: “com-versar” ou dançar junto.
Um bom diálogo é, de fato, uma boa dança, e uma dança criada no improviso, onde os participantes constroem coletivamente sua própria coreografia a partir da percepção que cada um tem de si mesmo e do outro.
No diálogo, cada dançarino tem espaço para dar seu passo, o que pressupõe independência, mas, ao mesmo tempo, co-dependência, na medida em que, só juntos, passo a passo, entre pulsos e repousos, complementando talentos diversos, é possível compor algo maior do que a expressão individual seria capaz de criar.
O que se cria de novo é o significado comum, a construção de um conteúdo de informações, sejam símbolos, palavras ou gestos, que façam sentido para os que participam do diálogo. No entanto, tanto na dança quanto no diálogo, é muito mais frequente o controle e a competição do que a co-ordenação e a co-elaboração, o exercício do poder ao invés do exercício do amor.
E, quando um indivíduo ou um grupo de indivíduos assume o comando dos demais, perde-se a razão primeira do diálogo, na medida em que, no lugar de um significado comum, só possível de ser construído coletivamente, surge o significado único, estabelecido pelo indivíduo ou grupo de indivíduos que controla o diálogo. Significado único é o mesmo que verdade única, ou realidade única, ou razão única.
Vivemos imersos no “com-bater”
Não reconhecer as múltiplas verdades que emergem num diálogo é o mesmo que não reconhecer as pessoas que dele participam. Quando não se inclui a verdade do outro, não se valida a sua presença. Sem presença, não há autonomia, condição essencial para a existência de qualquer processo criativo co-elaborativo.
O melhor laboratório para observar os assassinos de diálogos é nosso próprio viver, as experiências que vivemos na alternância entre o “com-versar” e o “com-bater”. O dificultador nesse processo é que tendemos a apontar como assassinos pessoas e, preferencialmente, outras pessoas, ao invés de nós mesmos. E, quando isso acontece, o próprio exercício de refletir torna-se ele mesmo mais uma manobra para reforçar o “com-bater” em detrimento do “com-versar”, na medida em que se estabelece a relação entre um que tem razão e outro que não a tem. Nos seria muito mais útil se associássemos os assassinos de diálogos a palavras e expressões verbais e não verbais, e não aos seus autores. Isso porque, se elas se originaram no outro ou em nós, sempre temos a liberdade e o poder de reverter seu fluxo destrutivo e separatista para os princípios criativo e unitivo fundamentadores do diálogo. Não importa quem começou a guerra, nós podemos interrompê-la a qualquer momento – claro, se tivermos consciência de que estamos em uma guerra e não a queremos vivê-la.
Consciência como caminho para o diálogo
Parafraseando Confúcio, pode-se atingir a consciência pela experiência, pela contemplação ou pela meditação. A experiência costuma ser a mais penosa, porém também tem se mostrado a mais efetiva, na medida em que é o caminho mais simples para quem, como nós, vive imerso na cultura ocidental do fazer.
Mas como a experiência pode nos conscientizar sobre os rumos do diálogo? A “experiência sentida” nos aponta rapidamente se estamos ou não no caminho do bem estar – leia-se caminho do amar. Ninguém que se sente, de alguma forma, ameaçado por outro, está no caminho do bem estar. Portanto, no espaço de convívio com o outro, qualquer sensação desagradável, como aperto no peito, taquicardia, suor frio, indisposição estomacal, dor de cabeça, pressão alta, já é um indicativo de que podemos estar em um “com-bate” e não em um “com-versar”. Nosso corpo nos diz onde estamos e, a partir dessa consciência, podemos escolher se queremos ou não nos manter nesse espaço; sim, podemos escolher nos manter em um espaço de mal estar, o que fazemos com relativa frequência, pois a dor e o sofrimento, por mais paradoxal que possa parecer, costumam oferecer algum tipo de ganho a quem escolhe sustentá-las em seu modo de viver.
Outra alternativa para se acessar a consciência se dá por meio da “experiência pensada”. Aqui já nos encontramos em uma dinâmica reflexiva mais sofisticada, onde observamos não apenas sinais do corpo, mas símbolos que se manifestam no espaço relacional. A comunicação não verbal é a que costuma “falar” mais alto. A expressão do rosto, a posição dos braços, o movimento das mãos, a postura do corpo, tudo isso nos revela, em nós e no outro, em que espaço estamos vivendo – no espaço do bem estar ou no do mal estar?
Além de nossos sentires íntimos e da comunicação não verbal, as palavras também têm o poder de gritar em nossos ouvidos o que, de fato, está acontecendo. Só que, de ouvidos fechados, não ouvimos absolutamente nada. E ouvido aberto, no caso do diálogo, é o “ouvido curioso”, que adia o julgamento e assim nos ajuda a associar palavras com os sentires íntimos e a comunicação não verbal.
Quando conseguimos manter nossos ouvidos abertos, identificamos mais facilmente os verdadeiros assassinos dos diálogos: as generalizações, as expectativas, os julgamentos e a intolerância ao erro.
Generalizações ignoram que somos seres em transformação permanente
Uma boa pista para identificar a ação das generalizações é o uso das palavras nunca e sempre. “Você sempre faz isso.” “Você nunca repara em mim”. Expressões como essas costumam acender o pavio da discórdia, posto que são carregadas de injustiça. Ninguém é sempre – ou nunca – assim ou assado. Tudo bem que quem fala tal coisa está, na verdade, carregando nas tintas para expressar sua dor por algo que o outro tenha feito ou deixado de fazer, mas é bom que ele ou ela saiba que, ao fazer isso, dificilmente irá na direção da “com-versa”. Afinal, quem é reduzido a um padrão fechado, sente-se – pasme! – aprisionado, levando-o ou levando-a a indignar-se com a injustiça, o que acaba por estimular ou potencializar o “com-bate”.
Expectativas afundam qualquer relacionamento na lama do rancor
“Expressar sua dor por algo que o outro tenha feito ou deixado de fazer” é uma frase que não serve apenas para alertar sobre os perigos das generalizações. O que se esconde por trás dela talvez seja algo ainda mais perverso: as expectativas. Num relacionamento, expectativas são o que esperamos que o outro faça para nós e que, não raras vezes, não são claras nem para nós, que dirá para o outro. Aí surge a função da adivinhação. “Meu bem, está tudo bem com você?” Ao que ele ou ela responde, amuado ou amuada. “Tá! Você não está vendo como estou bem?” Já que não adivinhamos como atender a expectativa do outro, merecemos ser punidos pela ironia! Não há relacionamento que sobreviva às expectativas. Mais dia, menos dia, ele irá ruir, seja de maneira escancarada ou velada.
Certezas cegam
“Não foi isso o que você disse.” Ainda me surpreendo quando me deparo com esse tipo de frase. Como o outro é capaz de afirmar com tanta certeza o que eu disse ou não disse? Não só afirma, como briga comigo quando resolve me convencer de que eu não disse o que eu disse. E ainda insiste: “Tenho certeza disso!” Parece conversa de louco e, bem, na verdade, é, sim, conversa de louco. No entanto, é o tipo de conversa que acontece em nosso cotidiano com uma regularidade assombrosa. Depois de chuchu em cerca, pessoas com certezas é o que mais tem no mundo – e certezas não apenas sobre elas ou sobre coisas do mundo, mas certezas sobre nós. Espantoso o poder dessa gente! Deveriam usá-lo para ganhar na loteria e não para julgar os outros!
A intolerância ao erro é o golpe baixo dos donos da verdade
“Não acredito que você fez isso!” Quem nunca se enganou e, antes que pudesse perceber, levou o carimbo de ignorante na testa? A intolerância ao erro é, obviamente, a outra face do cultivo das certezas. E é também usada na base de dois pesos, duas medidas. Para quem se acha sempre certo, levar do outro o carimbo de burro é comprar briga feia. Os donos da verdade alegam que já são auto-exigentes o suficiente, um eufemismo para disfarçar a intolerância com a crítica externa.
Embora cada assassino possua seus próprios métodos para aniquilar diálogos, todos fazem uso de uma arma comum – uma arma que combina sentires íntimos, expressão verbal e expressão não-verbal e, o que é pior, de operação tão simples que pode ser manipulada até por uma criança. Basta apontar o dedo para o outro, acompanhando esse gesto pela palavra “você” e disparar o gatilho da culpa. Dependendo do momento escolhido – quanto mais frágil o outro, melhor – e da intensidade com que a arma for utilizada, pode-se devastar não apenas um diálogo como a relação de uma vida inteira.