O desprezo nosso de cada dia

sábado, 08 janeiro 2011, 09:27 | Tags: , , , , , , | 5 comentários
Postado por Fábio Betti 

No julgamento sumário, o juiz olha os fatos, aplica a lei e dá a sentença.

O julgamento sumário costuma ser aplicado em casos mais simples, onde se julga não ser necessário ouvir réus e testemunhas e em situações onde não se dá o direito de defesa ao réu, o que, normalmente, ocorre em regimes autoritários.

E há ainda uma terceira forma de aplicação do julgamento sumário, que consiste em pré-julgar o réu, transformando o processo de julgamento em um teatro onde o desfecho do drama já foi definido.

Vamos con-ju(l)gar? Eu julgo. Tu julgas. Ele julga. Nós julgamos. Vós julgais. Eles julgam.

No Direito ou nos tribunais cotidianos da vida, o que está em pauta em qualquer julgamento é a intenção real ou não de ouvir o que o outro tem a dizer – uma escolha que não tem absolutamente nada de trivial. “Quando escolhemos não ouvir alguém, escolhemos não legitimá-lo como ser humano”, explica Humberto Maturana, renomado biólogo e estudioso das relações humanas. O escritor espanhol Baltasar Gracián y Morales dizia que “o desprezo é a forma mais sutil de vingança”.

Como o molestado que, de repente, se transforma em molestador, aprende-se a arte de desprezar, mais facilmente, sendo desprezado. E, como escreveu Luc de Clapiers Vauvenargues, “ninguém se pode gabar de nunca haver sido desprezado”, somos todos desprezadores em potencial, magistrados de martelo em punho à espera de uma oportunidade para aplicarmos a sentença sumária.

Mas, afinal, por que se despreza o outro, inferiorizando-o a uma condição não humana? Por que escolhemos não ouvir o outro?

Como sempre, só falo a partir de minha própria experiência. O que ouço ou leio sobre o tema a partir das experiências alheias só serve para que eu me pergunte como vivo o desprezo em mim. Suponho que não o viva de forma muito diferente das demais pessoas, pois, quando me sinto desprezado, julgado sumariamente, sem direito a defesa ou sem ter sido genuinamente ouvido, é como se, de fato, eu deixasse de existir. Nos momentos em que isso acontece, a imagem que me ocorre é de uma cela solitária, condenado a viver eternamente separado do outro.

E, no entanto, desprezo. Mesmo experimentando a profunda dor do desprezo do outro por mim, eu também sou aquele que despreza. E quando me pergunto por que desprezo, vejo na resposta justamente o abismo que eu mais temo.

Desprezo o outro porque, quando realmente o ouço, quando estou com os ouvidos atentos, a mente quieta e o coração aberto para ouvi-lo, o que ele traz sempre me transforma. “Quando realmente ouço de onde o outro diz o que diz, quando me abro para ouvir a sua verdade, me entrego a um fluir sem controle de pensamentos, emoções e sentires íntimos”, alfineta Maturana, preparando-me para apresentar o “presente contínuo cambiante”, esse tempo que é o único espaço onde a vida é capaz de acontecer.

O abismo advém do fato de que não se pode controlar o presente, assim como não se pode enquadrar um ser humano em modelos concebidos pela observação de seus atos e palavras, muito menos por seus pensamentos e sentimentos, coisa que rotineira e sistematicamente fazemos. Não se pode fazer isso, pois quem o julga, julga a partir de seus próprios modelos e, pior, julga uma parte do outro, parte esta que, no ato mesmo de julgar, pode já ter se modificado a ponto de não mais existir.

Viver sem controle parece o mais temível dos abismos, pois tudo o que aprendemos nesta vida tem a ver com controle. Desde o controle de nossos esfíncteres, passando pelo controle de nossos sentimentos – “engole esse choro, menino!” -, de nossos compromissos, estabelecendo rigorosos planos e agendas que não preveem as surpresas do viver, somos seres imersos na ilusão de que podemos controlar nossas vidas. E o outro, esse outro que insiste em ser diferente, que não se curva aos nossos pré-julgamentos, que muda de roupa a todo instante, sendo, ao mesmo tempo, mocinho e bandido, santo e diabo, esse outro torna-se nosso maior inimigo.

Acredito que escolhemos participar de conflitos, quando, de alguma forma, amamos alguém e ainda desejamos estar unidos a essa pessoa. Já para esses que nos ameaçam, esses outros que nos transformam à revelia, nossa arma mais letal, o desprezo.

“Morre-se de amor, é verdade, mas se morre muito mais dessa doença cruel e implacável, que a sociedade moderna criou e parece não estar muito preocupada em exterminar – o desprezo pelos outros.” Armando Baptista-Bastos, jornalista e escritor português.

5 comentários para “O desprezo nosso de cada dia”

  • Pronto, ouvir é amar, no sentido mais amplo q essa palavra pode ter. Ama-se; ouve-se. E refletir, escrever, falar sobre isso são formas de plantar sementes de amor na Terra. Desejo muito amor pra vc e que ele possa chegar a todos que cruzarem o seu caminho.

  • Ganhei essa frase de presente da Gi e passo pra frente porque presente deve ser sempre presente:
    “Não sei dizer como é um homem que desfrute de completa auto-realização porque nunca vi nenhum. Antes de buscar a perfeição, devemos viver o homem comum, sem automutilação.” C. G. Jung
    Desprezar o outro e desprezar a si mesmo é o exemplo máximo de automutilação.
    Conheço isso bem.
    E como sonhar com perfeição quando não se consegue o mínimo do mínimo que é viver como uma pessoa comum?

  • Mary Help disse:

    Foi assim, num desses dias de ‘desprezo nosso de cada dia’ que encontrei o seu relato sobre o que mais profundamente me dói no meu relacionamento de 7 anos de casada. Com um homem que, difere de mim culturalmente, economicamente e em seu comportamento. Estou amparada pelas suas idéias Armando Baptista Bastos, para aprender que, quem quer aprender a auto amar-se para amar o outro de verdade, necessita compreender que Deus, Inteligência Suprema, nos envia os outros com seus problemas e dificuldades para nos mostrar o quanto do AMOR somos capazes de amar com a ‘trave’ em nossos olhos. Enquanto as nossas fragilidades internas e defeitos nos impedirem de manifestar o amor mais dilatado, amaremos assim, com dor e recebendo o desprezo.

  • Mary Help disse:

    Gostei muito do texto.

  • vincius disse:

    isso me ajudor nos estudos

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