O que será que se esconde na tentativa deliberada e massiva de extrair de serial killers sua identidade com a espécie humana para reclassificá-los como monstros?
Toda vez que alguém sai por aí cometendo algum crime considerado por uma maioria como hediondo, surge um movimento de negação aparentemente espontâneo, que se ocupa em tratar de buscar explicações para o ocorrido, ao mesmo tempo em que rebaixa o criminoso a uma natureza animal e, portanto, não humana.
Baseado em minha própria experiência como ser humano e no que observo dos animais, vejo aí uma dupla injustiça. Primeiro, não importa o ato de crueldade que um ser humano possa cometer, ele continuará sendo humano. No máximo, pode ser considerado um doente mental, mas, mesmo assim, um humano. E, segundo, animais não demonstram atos de crueldade. Eles não torturam suas presas. “Quando a leoa caça a gazela, não está competindo. Está indo a um restaurante”, explica o biólogo Humberto Maturana, trazendo mais um elemento para análise: a competição como algo não natural. Isso refuta todas as teorias já lançadas para explicar a evolução das espécies, nos apresentadas sempre em competição por sua própria vida. Segundo Maturana, nenhuma espécie compete com outra, mas simplesmente realiza o seu viver. Em outras palavras, nenhuma leoa mata mais gazelas do que pode comer.
Como explicar, no entanto, a competição como algo tão presente na vida humana? Ainda segundo Maturana, todo ser humano nasce na confiança de ser amado. Sem que um bebê seja minimamente amado por sua mãe, não há como sobreviver. E essa capacidade de amar pode ser perpetuada ao longo de nossa existência. Por esse motivo, o biólogo distingue nossa espécie adicionando a palavra “amans” duas vezes: “Homo Sapiens Amans Amans”, sendo o primeiro “amans” relativo ao determinismo biológico e, portanto, independente de nosso livre arbítrio, e o segundo, uma possibilidade, ou seja, uma condição dependente de uma escolha. Assim, mesmo que nossa biologia nos impulsione para o amar como mecanismo de autopreservação, nossa cultura foi se transformando ao longo dos séculos de uma cultura de colaboração para uma cultura de competição, com o “amans”, aos poucos, sendo substituído pelo “agressans”.
Precisamos do amar e da colaboração para existirmos, porém escolhemos o ódio e a competição. O resultado dessa subversão de nossa natureza não nos deveria surpreender a ponto de o negarmos.
Os tiros em Columbine, o caso Richthofen, o maníaco do parque, o casal Nardoni, o massacre do Realengo e tantos outros episódios de violência não transformam seus protagonistas em monstros. Repito, qualquer explicação que se crie sobre eles não os desqualifica como seres humanos. São tão humanos quanto eu e você. E, talvez, esse seja o motivo pelo qual todos nós, com a preciosa ajuda dos formadores de opinião, apoiados em órgãos de imprensa que se apresentam como donos da verdade, nos reunamos em consenso para os afastarmos de nosso convívio, buscando justificativas que comprovem tratar-se de monstros e não de seres humanos.
No entanto, o que percebo é que, quanto mais insistimos nesse auto-engano, mais contribuímos para criar os monstros que tememos. Uma amiga psicóloga me lembrou outro dia de uma frase do psicoterapeuta e autor de livros de auto-ajuda Wayne Dyer, que nos ajuda a entender esse fenômeno: “Mantenha seu foco naquilo que você quer, jamais no que você não quer.” Para sobreviver, o Homo sapiens ganhou um cérebro que funciona, basicamente, da seguinte forma: tudo aquilo que tem a sua atenção, ganha sua força e sua ação e tende a crescer. Isso significa que, sempre que um crime é desdobrado em centenas de milhares de conversações, como se deu nos casos aqui citados como exemplo, estamos contribuindo para que ele se perpetue por outros atos de violência equivalentes.
No direito penal, cúmplice é a pessoa considerada responsável penal por um crime ou falta, não por haver sido o autor direto do mesmo, mas por ter colaborado na execução do fato com atos anteriores ou simultâneos. Hoje, não prevalece a distinção entre autor e cúmplice, no sentido de colaboração principal e secundária, respectivamente. Todos os que concorrem para a infração penal são autores, vale dizer co-autores.
Você pode até ficar com muita raiva do raciocínio que esse texto explicitou, mas, aos olhos de como o seu cérebro funciona e do que reza o direito penal, se existem monstros à solta por aí, lamento informar, mas você também é um deles.
* Imagem utilizada para ilustrar esse texto: “Auto-retrato”, de Gustave Courbet”