Sobre talentos e dores mal tratadas

terça-feira, 26 abril 2011, 15:35 | Tags: , , , , | Nenhum comentário
Postado por Fábio Betti 

Comecei a escrever com 12, 13 anos. Enquanto a maioria dos garotos de minha idade seguia seus hormônios, eu colocava tudo no papel. De resenhas literárias, comentários sobre filmes, problemas familiares a amores platônicos, tudo era transformado em prosa ou poesia. Sem ou com rima, era assim que minha vida se expressava. Durante anos, fechei-me nesse mundo onde tudo é possível, fazendo do papel meu mais fiel companheiro, ele que sempre aceita tudo o que nele colocamos, sem reclamar ou expressar qualquer juízo de valor. Foi assim que sobrevivi à minha adolescência. Escrever fez-me ter vontade de continuar vivendo.

Em certo sentido, é o mesmo fenômeno que ocorre com uma pessoa que possua alguma dificuldade física séria. Por exemplo, para sobreviver um cego acaba desenvolvendo uma hipertrofia da audição. Para conseguir se movimentar com a cadeira de rodas, um paraplégico tem os músculos de seus braços aumentados. A ausência de um talento é, normalmente, compensada com o desenvolvimento exagerado de outro.

Mas se no cego e no paraplégico essa ausência fica evidente, nem sempre é fácil identificar a origem da hipertrofia em situações de natureza não-física.

No meu caso, escrever foi a forma que encontrei para compensar a dor de não me sentir amado – pelo menos, amado do jeito que eu queria. Eu era o tipo de criança que não chamava muito a atenção. Ia bem na escola, ia bem em casa. E quanto melhor ia, menos amado me sentia. Como a maior parte das crianças, desejava um amor que meus pais não eram capazes de corresponder. Resultado: encontrei nas letras o conforto que procurava. No entanto, tanto quanto os ouvidos do cego não são capazes de enxergar e os braços do paraplégico não conseguem funcionar como pernas, as palavras que escrevo jamais foram suficientes para compensar a dor do desamor.

Enxergar, andar e amar são coisas insubstituíveis. Podemos até sobreviver sem elas, mas, certamente, é mais difícil.

Nesses dias de poucos milagres, são raros os casos em que um cego volta a enxergar e um paraplégico a andar. Eliminando-se as situações onde a limitação é de origem psicológica, é algo que depende pouco deles.

Isso me faz refletir sobre qual será o verdadeiro aprendizado da dor. Talvez a resposta esteja justamente nos momentos de nossas vidas onde, misteriosamente, nos sentimos cegos e paralisados. É quando não conseguimos ver o óbvio e nos quedamos imóveis frente a uma situação onde precisamos agir que, como por milagre, desenvolvemos talentos compensatórios. São estes momentos, portanto, que deveríamos investigar, nos perguntando: “O que falta em mim que me leva a hipertrofiar este talento?”

Voltando-me novamente para meu próprio exemplo…por que será que o amor que meus pais foram capazes de me dar parecia tão insuficiente a ponto de negá-lo? Ao invés de saborear o teoricamente pouco que me ofereciam, optei por ficar com o aparentemente ilimitado amor propiciado pelo mundo sem fronteiras da literatura, onde podia simular até mesmo o amor impossível de minhas vontades de criança…

O que me ocorre, portanto, é que o papel mais importante da dor seja nos levar a um estado primitivo, uma espécie de reinado do instinto, onde a palavra de ordem é sobreviver. Neste sentido, a dor nos ajuda a resistir, a não entregar os pontos. Com o tempo, no entanto, o desenvolvimento do talento pode nos distanciar dela a ponto de disassociá-lo de sua origem. “Qual é a dor por trás desta hipertrofia?”

Como tudo na Natureza, não há dilema que fique sem solução. Para decifrar este enigma, é necessário trilhar o caminho de volta na rota de fuga que traçamos em algum lugar do passado. A sensação é como estar à deriva em alto mar e ter de nadar contra a corrente. Embora o esforço seja enorme, quanto mais nos aproximamos da praia, mais aliviados nos sentimos.

Os talentos que desenvolvemos são como bóias que não nos deixam ir para o fundo, mas que também transmitem uma falsa ideia de que tudo está bem. Símbolo de resistência ou requintada máscara da dor, o fato é que eles nos prestam um serviço importante, permitindo que ganhemos tempo, à espera que venha o amor para complementar nosso aprendizado.

Porque, se a dor nos ajuda a sobreviver, o amor transforma nossa capacidade de sobrevivência em prazer e, assim, aprendemos a viver. É como se um dependesse do outro, e nosso ciclo de vida dependesse dos dois para existir.

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