Patinho feio

terça-feira, 02 agosto 2011, 23:00 | Tags: , , , | Nenhum comentário
Postado por Fábio Betti 

Num país onde todos parecem ser negros, uma pele clara pode ser um bem raro, porém pouquíssimo apreciado

Todos os dias, em nosso trajeto para o National Indoor Sports Center, não havia como não reparar na imensa escultura postada na entrada do Emancipation Park, em Kingston – essa imagem ao lado. Quase que instantaneamente, nós, homens, brasileiros, em sua maioria, caucasianos, já tratamos de apelidar – sim, por inveja – o jamaicano do monumento de “O verdadeiro homem berinjela”, enquanto que as mulheres, brasileiras, em sua, maioria, também caucasianas, simplesmente admiravam o “monumento” com um maroto sorriso de Monalisa.

O que fazíamos na Jamaica? Acidade mais conhecida pelos altos índices de criminalidade do que por seus apelos turísticos foi escolhida para sediar os jogos pan-americanos juniores de 2011 deste que é o segundo esporte mais praticado no mundo. Se você pensou em tênis, natação ou atletismo, lamento, mas a modalidade esportiva que, depois do futebol, conta com mais adeptos, é o badminton. Imagine que o esporte praticado com raquetes e petecas é popularíssimo em países asiáticos bastante populosos como Paquistão, China, Índia e Japão, e assim fica fácil entender o segundo lugar no ranking. E o que brasileiros faziam num torneio de badminton? Bem, mesmo que a maioria não saiba, se pratica o badminton em terras brasileiras há mais de 30 anos, contabilizando-se atualmente milhares de atletas em várias cidades do país, entre os quais, meu filho mais velho, que estava ali como parte da delegação do Brasil.

Entre os atletas de badminton que se dirigiram para Kingston de praticamente todos os países das Américas, havia muitos asiáticos, caucasianos e africanos. Já a capital jamaicana não apresentava a mesma diversidade, tanto é que todos os outdoors que pude ver pela cidade traziam apenas e tão somente personalidades e modelos afrodescendentes, para ficar numa expressão politicamente correta. E não estou falando apenas de Usain Bolt, tão popular lá quanto Pelé é aqui. Isso acontecia em qualquer propaganda – de operadora de telefonia celular a carro de luxo.

Nesse ambiente de pouquíssima diversidade, eu, justamente o diverso, me vi repentinamente no lado que é ignorado, discriminado, no lado fraco que não tem voz ou valor. Forte era o africano musculoso e cheio de valor por seu poder de transformar a terra e gerar riquezas para o país.

Esclareço que não pretendo combater essa distinção ou diminuir o valor do homem ou da mulher jamaicana. Essa ilha tão cheia de belezas naturais já foi explorada pela Espanha, pela Inglaterra e até por piratas que infestavam as Antilhas. Chegou a ser um dos maiores centros de tráfico negreiro para a América do Sul e só se livrou do colonialismo inglês pouco mais de 50 anos atrás. Nada mais natural, portanto, que eu, um branco, como um inglês, digamos, típico, não fosse muito bem visto ou bem-vindo ali. No entanto, eu não era inglês, aliás, como, de fato, era o pai daquele que é o maior ídolo popular jamaicano, Bob Marley. Filho de um inglês mais branco do que eu com uma africana tão negra quanto qualquer jamaicana, Marley sempre lutou contra o racismo. E, no entanto, ao andar nas ruas por onde ele passou, muito perto da casa onde ele viveu e que acabou sendo transformada em museu, eu via em muitos olhares uma raiva contra algo que não me pertencia – e mesmo assim era a mim que essa raiva parecia se dirigir.

Caminhávamos com um grupo de amigos nas proximidades do hotel, quando um senhor de idade veio em nossa direção e gritou algo contra nossa presença ali. À noite, nem cercado de militares carregando fuzis, sentíamo-nos confortáveis. O desfile de abertura do torneio aconteceu justamente na praça do homem berinjela. Ao término, quando não conseguíamos localizar o motorista do ônibus que nos transportou, pensamos em voltar a pé – um percurso de não mais do que 1,5 km. Já era noite e resolvemos perguntar para um policial que fazia a segurança do evento se ele acreditava que podíamos caminhar com tranquilidade até o hotel. O policial recomendou que não o fizéssemos, mas não se ofereceu para nos acompanhar. Uma estranha sensação de insegurança pairava permanentemente no ar.

No aeroporto, pegamos um vôo para Nova Iorque onde eu, minha esposa e meus filhos éramos os únicos de pele clara. Na fila para o embarque, um oficial da segurança nos apontou um dedo ameaçador. Ele falava um inglês de difícil compreensão, mas deixou claro que se tratava de algum problema com meu filho de 14 anos. Acompanhei-o em uma sala, onde o garoto foi interrogado e teve sua raqueteira minuciosamente revistada. O policial deu a entender que procurava por drogas. Por que nós? Eu pensava. No meio de tanta gente, por que só nós? Como, em nenhum momento, ele justificou o procedimento, conclui que a razão era a nossa cor.

Embora eu também tenha tido inúmeras experiências agradáveis durante nossa estada em Kingston, onde conhecemos gente muito cordial e hospitaleira, essas situações mais tensas me transportaram para o que imagino ser o preconceito vivido por pessoas de pele escura em países dominados por pessoas de pele clara. E aí ficou claro para mim que, mesmo que o outro me defina pela minha pele, eu não sou a minha pele. Minha pele faz parte do que sou, mas sou muito mais do que uma pele. Minha pele já foi amarela, exposta ao sol intenso, ficou rosa, descascou como nas cobras, está hoje cheia de pintas e caminha lentamente para em algum momento se desfazer, quando, enfim, não será mais pele nem terá mais cor alguma. E, a propósito, meu filho que ostenta uma pele clara como a neve, teve um tataravô por parte de mãe tão negro quanto a mãe africana de Bob Marley.

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