Verdades para jogar na cara

terça-feira, 01 maio 2012, 18:04 | Tags: , , , | 6 comentários
Postado por Fábio Betti 

Nesses tempos onde expressar-se é, mais do que um direito, uma obrigação, tenho visto muita gente por aí usando a sinceridade para destilar veneno e impor suas verdades. E, depois quando obtém como resultado a raiva ou, pior, a indiferença alheia, acusa o outro de injusto ou incompreensivo. Afinal, a pessoa, pobrezinha, só estava sendo sincera.

“Sou responsável pelo que falo, não pelo que o outro escuta.” Quando o renomado biólogo Humberto Maturana disse essa frase, ele referia-se ao fato de que cada um ouve o outro a partir de crenças e valores absolutamente próprios e inescrutáveis para a pessoa que fala. Só aquele que escuta sabe o que escutou do que o outro disse. Por isso, “sou responsável pelo que falo, não pelo que o outro escuta”. Por outro lado, essa mesma frase, em suas inúmeras variações, vem sendo empregada com uma intenção que vai muito além da aceitação de que cada um de nós constrói os significados para tudo o que vê e ouve a partir de uma visão particular de mundo. Ela virou disfarce para o orgulho, para a intolerância e para a tentativa, consciente ou não, de impor verdades únicas, sem direito a que o outro se defenda, sob o risco de ser acusado de injusto. “As pessoas não suportam ouvir a verdade”, se indignam os donos da verdade. “Sou uma pessoa autêntica, não sou política”, defendem-se, quando, na realidade, querem dizer que têm o direito de atacar os outros à vontade. “Eu digo o que penso mesmo, doa a quem doer. Quem não me aceitar como sou, não me merece.” E eu pergunto: isso é sinceridade?

O cantor Gilberto Gil, então Ministro da Cultura, disse em uma entrevista que a hipocrisia é uma ferramenta da civilidade. “O exercício da hipocrisia se refere a um modo de ser civilizado, necessário à convivência entre as pessoas.” Oscar Wilde defendia que muita sinceridade pode ser fatal. O Marquês de Maricá, preocupado provavelmente em definir uma ética para a sinceridade, afirmava que “a sinceridade imprudente é uma espécie de nudez que nos torna indecentes e desprezíveis”. No entanto, quando o alvo de nossa “sinceridade imprudente” se indigna, nos espantamos. “As pessoas não suportam ouvir a verdade”, repetimos nosso mantra, nós que pertencemos ao seleto grupo das pessoas que suportam ouvir a verdade. E eu pergunto: será mesmo?

Será que quem se diz autêntico e, por isso, fala o que pensa, doa a quem doer, suporta ouvir as “verdades” que os outros pensam sobre ele ou ela? Já me peguei várias vezes com uma vontade enorme de dizer poucas e boas sobre o que penso desse tipo de atitude. Sinto um impulso quase incontrolável de jogar umas boas verdades na cara de certas pessoas. Por sorte, tenho resistido à atração de partir para cima dos que fazem da sinceridade uma arma contra a humanidade. Porque se eu desembuchasse minhas verdades em cima dessa pessoa, estaria fazendo exatamente o que recrimino. Sei bem o que é isso, pois já pratiquei incontáveis vezes a arte da crueldade disfarçada de sinceridade. E nada como alguém que já tenha se esbaldado no pecado para falar em detalhes sobre o pecar.

De vez em quando, ainda me pego em atos de “sinceridade irrestrita” que não estão nem aí para os sentimentos alheios. Então me lembro de outra frase do professor Maturana, uma em que ele define o ato de amar como sendo o reconhecimento do outro como legítimo outro. “Amar é o domínio das condutas relacionais através das quais uma pessoa surge como legítima outra na convivência com alguém.” Por isso, antes de dizer que o novo penteado dela está horrível, pare, pense e perceba que o horrível é apenas o que você acha do penteado dela e não necessariamente o que, de fato, é. E aí aproveite para se perguntar se há mesmo algum problema com o penteado do outro ou se é a sua lente que, de tão velha e viciada em ver sempre a mesma coisa, não consegue distinguir nada além de si mesma.

6 comentários para “Verdades para jogar na cara”

  • monica disse:

    Sempre me pergunto sobre as consequencias de dizer o que penso. E o que penso e falo nem sempre é o que acho do outro, mas o que sinto e penso pra mim! O problema é que se eu sou responsável pelo que falo, se o outro nao entender, nao aceitar, interpretar como crítica aquilo q é só o meu sentimento etc etc etc, eu mesma terei que arcar com as consequencias, que podem ser tao duras como o afastamento de uma pessoa a quem quero bem! Acho q é o que chamam de sincericídio, jocosamente. Já pratiquei algumas vezes e sei q dói muito! Por isso, continuo me perguntando e pesquisando que relações suportam o diálogo verdadeiro e, pra ficar bem chavao: amplo, geral e irrestrito?

  • Clarissa disse:

    Sinceridade pode ser antônimo de dissimulação mas, muitas vezes, dependendo de quem a lança (sim, é lançada), fica bem claro que a intenção é a de ser cruel, usando como fachada o “ser sincero”, que ilude a poucos e por pouco tempo rsrs. Os maiores iludidos somos nós, de nossa crueldade e arrogância.
    “Perante nós mesmos todos fingimos ser mais ingenuos do que somos: é deste modo que descansamos dos nossos semelhantes.”(Nietzsche)
    Bj

  • Fabio Betti disse:

    Acho sinceramente que a diferença entre a sinceridade que encobre a crueldade e a sinceridade que quer, de verdade, o bem do outro pode ser percebida em nosso coração. No fundo, sempre sabemos se o que queremos é nos unir ou nos separar do outro. Quando dizemos algo para nos unir ao outro, ou seja, dizemos o que pensamos para fortalecê-lo e não a nós mesmos, o outro também sente isso, e o resultado raramente é o afastamento da outra pessoa.

  • monica disse:

    Quão complexos conseguimos ser, para mim é um grande mistério… Busco o caminho da simplicidade e, quando me dou conta, estou indo no caminho contrário. Como só posso falar do que sinto e penso, percebo que o que pode parecer cureldade com o outro, é uma forma inconsciente de ser cruel comigo mesma. Por isso acredito que sejamos 100% responsáveis por todas as nossas relações. Me diga: como alguém pode agir e falar, de fato, em prol do bem do outro, se não o está fazendo pelo bem de si mesmo? Daí o afastamento e outras consequencias doloridas… Enfim, é o meu costumeiro blá-blá-blá pra algo que invariavelmente terei que experimentar enquanto viver por aqui! Como dizem os irmaos lakota : Aho Mitakoyasim!

  • Yara disse:

    Sempre vivo um dilema com relação a dizer o que penso, pq isso pode magoar outra pessoa. Se não digo o que penso para não criar atritos, sinto que não estou me colocando de forma honesta. Costumo pensar que quando digo o que penso não estou jogando ou impondo minha verdade, e sim minha opinião/visão naquele momento…se usamos a sinceridade como você coloca, como uma arma ou uma “ferramenta de crueldade”, ela não perde o sentido? Se a sinceridade é simplesmente colocada a serviço do ego de quem fala, ela tem valor?
    Minha opinião (e não minha verdade) sobre falar o que penso, é que o valor de se expressar de forma sincera está no fato de isso criar uma ponte entre duas pessoas e facilitar o diálogo e o conhecimento mútuo….e aí entra a forma amorosa de se colocar.
    Se não é essa a intenção, acho que a “sinceridade imprudente” acaba ferindo quem recebe e, em algum momento, quem falou…né não?

  • Fabio Betti disse:

    Concordo plenamente, Yara, plenamente. Sinceridades imprudentes são crueldades disfarçadas.

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