Cartas inventadas para Clarice – diário do morrer

sábado, 16 junho 2012, 12:44 | Tags: | Nenhum comentário
Postado por Fábio Betti 

Pois é, Clarice, o nome soa tétrico e leva à ideia de que se trata do registro dos últimos momentos de um moribundo. Podem até ser meus últimos momentos, não tenho como saber. Mas não se tratam de registros de um moribundo, pelo menos, não por enquanto. Morrer é o verbo que melhor explica o que nos acontece desde que nascemos: morremos um pouco a cada dia. Até que chegue o dia em que não mais morreremos. Espero que esse dia demore a chegar para mim…

Podia também ser o “Diário da Morte”… Na realidade, não podia, porque eu não teria nada para contar sobre a morte, na medida em que não a vivi e, se a vivesse, creio que não teria como falar sobre ela aqui. Mas sobre o morrer, vivo-o todos os dias, a cada instante, como uma espécie de outra natureza do viver, viver e morrer caminhando lado a lado. Osho disse que Buda só dava valor a verbos. Nunca li isso de Buda, mas li e ouvi algo semelhante de Maturana, para quem as coisas não são em si. A mesa só é mesa no ato de “mesear”. Se subirmos em cima dela para trocar uma lâmpada, ela deixa de ser mesa para se tornar uma escada, e aí ela já não está mais “meseando”, mas “escadeando”. Por isso, Clarice, nada é em si. A morte não é em si. Só existe mesmo o morrer. E é sobre ele que decidi escrever, o morrer nosso de cada dia – melhor, o meu morrer de cada dia, pois não vejo como falar do que o outro vive senão criando uma farsa ou assumindo que escrevo sobre mim utilizando o outro como pretexto. Vamos nos poupar de pretextos e subterfúgios. Afinal, estamos morrendo. A vida urge. A areia cai sem trégua na ampulheta.

Você bem sabe, Clarice, que, como tudo em minha vida, uma ideia não vem de um lugar só. A ideia deste diário veio de uma necessidade antiga de organizar o que vivo diariamente em uma retrospectiva – todo curso, todo processo de autoconhecimento em que me embrenho fala disso, o que me leva a concluir que faz sentido. Cheguei até a comprar um belo caderno e iniciar um diário, mas tenho uma preguiça enorme com a escrita, enquanto o teclado parece uma segunda pele. E o outro ninho da ideia foi um exame de sangue que fiz como parte de um tratamento para emagrecer. A ferritina – ferro para os íntimos – apresentou um resultado maior que o dobro do considerado normal.

Antes do retorno ao médico, resolvi consultar o Dr. Google…
“Um adulto saudável tem de 40 a 160 microgramas de ferro no sangue, que é o nível recomendado. Índices acima disso são um sinal de problema. Entretanto, há quem acumule o mineral em quantidade superior à necessária. É o caso dos portadores de hemocromatose – alteração genética que faz com que o organismo absorva o ferro em quantidades maiores ou não faça sua eliminação adequada…”

Hemocromatose é de foder! Não tinha nome mais feio, não?
Alarme devidamente acionado, no dia da consulta, logo que o médico perguntou como eu estava, respondi: “Estou ótimo, mas… o que significa essa quantidade a mais de ferritina?” Ao que ele me respondeu: “Só tem ferritina alta quem faz exame de sangue.” Fiquei na dúvida se ele estava de sacanagem comigo ou queria me tranquilizar. De qualquer forma, o jeito gozador do médico não obteve qualquer efeito tranquilizante. Tanto é que saí de lá pensando no pior. E, como acontece todas as vezes em que penso o pior, já me imaginei num processo de morimbudização, do verbo morimbudizar. Em segundos, crio o roteiro, seleciono e convoco os atores, fecho o orçamento com os produtores, escolho as locações, contrato equipe e equipamentos, rodo, edito e distribuo o filme de minha morte. Melhor, o filme dos últimos momentos de minha vida contados a partir do exato instante em que me despeço do médico com mais três exames a fazer.

Em breve, te escrevo mais, Clarice, sobre esta e outras histórias.

Carinhosamente,
Fabio Betti – São Paulo, 16 de junho de 2012

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