Cartas inventadas para Clarice – beleza e paciência

quinta-feira, 21 junho 2012, 08:41 | Tags: , , | Nenhum comentário
Postado por Fábio Betti 

Clarice, outro dia fui tomar café com um amigo de longa data e descobrimos – no fundo, já sabíamos – que temos um padrão comum, que também podemos chamar de a sombra do perfeitinho. Crianças hiperativas, jovens CDFs, adultos bem-sucedidos e altamente auto-exigentes, sofremos horrores quando soltamos a mão do controle um pouco e o mundo externo solta os cachorros sobre nós. “O que está acontecendo? Você está com alguma problema?”, é o que invariavelmente acabamos ouvindo. Acostumamos, ou melhor, adestramos o outro a acreditar que somos realmente perfeitos e, quando baixamos a guarda, deixando que nossos erros apareçam, o outro perde a referência. E nós, que igualmente necessitamos da validação externa para nos validarmos, reagimos com algo na linha “pô, eu já faço tantas coisas legais e você vem aí apontar os meus erros?”

Se o elogio nos coloca lá em cima, Clarice, a crítica nos coloca lá embaixo. Como fazer para fugir dessa gangorra? Tentando mudar o outro, claro! Mas essa, como todo mundo sabe, é uma tarefa inglória, para não dizer estúpida. A outra maneira é óbvia: não reagir, seja diante de um elogio, seja diante de uma crítica. Rudolf Steiner, em seu livro “Exercícios Complementares”, chega a ensinar um método reflexivo para não cair nessa armadilha, mas… me pergunta, Clarice, se funcionou comigo? Juro que tentei… e muito! O que tem funcionado comigo é algo, digamos, mais impactante – sim, é dona morte outra vez na área.

Contei ao meu amigo que, sempre que vivo uma situação onde lembro da possibilidade de minha finitude como pessoa, passo a viver mais livre da opinião alheia. É este estado de profunda liberdade que experimento quando, de repente, me dou conta da janela de possibilidades que o tempo todo me acompanha: posso viver mais 50 anos ou morrer no próximo instante. E para comprovar a incontestabilidade desta teoria, algumas horas depois do encontro com meu amigo, lá estava eu sossegadamente pilotando minha moto, quando um carro avança na perpendicular em alta velocidade, ignorando que a prioridade de passagem era minha. Avalio que não teria tempo suficiente para frear a moto e tomo a decisão contrária, acelero o motor mais ainda. Consigo atravessar o cruzamento antes de ser atingido pelo carro, mas por muito pouco isso não aconteceu. Meu coração dispara imediatamente e tenho que respirar profundamente algumas vezes para me acalmar e seguir meu trajeto. Percebi que minha vida poderia acabar naquele instante, antes, inclusive, de fechar qualquer diagnóstico sobre o excesso de ferro no organismo. Aliás, a lembrança desta outra história surge como algo surreal quando a perspectiva do morrer emerge assim de forma tão concreta.

Quando vivo experiências limítrofes como essa, parece que instalo um mecanismo em meu modo de operar que simplesmente me impede de reagir emocionalmente à validação ou invalidação externa. É como seu eu entendesse, de uma forma ou de outra, que a vida é curta e frágil demais para eu ficar me preocupando com algo que não é meu, mas do outro. Não faz qualquer sentido, portanto, reagir ao que outro pensa sobre mim, pois o que ele pensa sobre mim é problema dele e não meu. É o que o Tião Rocha vive repetindo: as duas coisas mais importantes da vida são beleza e paciência. Se gostam de mim, beleza. Se não gostam, paciência.

Bem, Clarice, chega por hoje. Até mais!

Carinhosamente,
Fabio Betti – São Paulo, 21 de junho de 2012

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