Cartas inventadas para Clarice – vida de passarinho

domingo, 19 agosto 2012, 22:57 | Tags: , , , , , , | 2 comentários
Postado por Fábio Betti 

Querida Clarice, não sei se você teve oportunidade de conhecê-lo, mas Manoel de Barros, poeta matogrossense que considero uma sumidade em passarinhos, escreveu que „poesia é voar fora da asa“. Lembrei-me do poeta quando presenciei o estrondo feito pelo passarinho ao bater com tudo contra a janela de vidro de minha casa de campo. Ouvi o barulho e só percebi a gravidade da cena quando vi o passarinho se contorcendo no chão. Peguei-o nas mãos e, delicadamente, apalpei-o em busca de uma asa, um pescoço quebrado, mas não consegui identificar o dano sofrido pelo bichinho. Só sentia que era sério, pois ele respirava com muita dificuldade e não conseguia se equilibrar sozinho.

Acompanhado de meu filho, o transportamos para a estufa, onde fizemos um ninho para acomodá-lo melhor. Temia que a pressão de meus dedos lhe agravasse a dor. No ninho improvisado, víamos o passarinho ofegante, abrindo muito o bico como se lhe faltasse o ar. Nos quedamos ali, sem saber o que fazer, assistindo a luta do passarinho pela própria vida. Em nosso íntimo, esperávamos que ele se recuperasse do acidente. E é exatamente isso o que parece acontecer, quando, de repente, ele começa a se debater e tenta se levantar fazendo muita força nas asas. Mas logo em seguida, cai de novo e, não há dúvida, está entregue. Uma, duas, três respirações profundas e, com uma última e longa expiração, vejo que sua vida lhe escapa. Seguro-o mais uma vez e não sinto mais as batidas aceleradas de seu coração. Ele ainda está quente, mas, todo molinho, já não é mais passarinho.

Diz-se de quem teve uma morte tranquila que morreu feito um passarinho. Depois de presenciar a agonia do passarinho que bateu na vidraça, me pergunto como pode alguém que não morreu afirmar que um outro teve uma morte tranquila. Morreu dormindo, dirá o petulante, reafirmando sua tese. Sonhava? Pergunto eu. Se sonhava, o que sonhava? E se, de repente, acordou para presenciar, consciente, seu último suspiro? Sofreu feito um passarinho estatelado na vidraça ou morreu sem perceber que morreu?

Testemunhar o último suspiro, mesmo que de um passarinho, não é uma lembrança agradável. Vejo agora que tive a sorte de não estar presente no último suspiro de minha mãe. Mas, do mesmo modo que ocorreu com o passarinho, quando cheguei ao seu leito, poucos minutos depois, ainda senti sua presença viva – não no corpo inerte, mas no ambiente, em tudo a minha volta e, principalmente, em mim. Da mesma forma, o passarinho parou de respirar, e a sensação é de que a estufa onde eu, ele e meu filho estávamos foi subitamente inundada de vida.

Não conseguia sair de perto daquele corpinho sem vida. Fiquei triste, não sei se pela consciência de minha total impotência ou pela morte estúpida de um ser que não foi feito para morrer. De repente, eu já não invejava mais o passarinho. Ele tinha asas, mas não podia mais voar. E eu que nunca tive asas e só fui capaz de voar sozinho em sonho, tinha o que o passarinho nunca mais poderia ter, algo certamente muito mais precioso do que o poder de voar. Eu tinha a vida, e nenhuma vidraça a me ameaçar naquele momento.

Essa constatação, Clarice, essa consciência do que me separava do passarinho foi me provocando um profundo mal-estar. Meu filho me chamava para fora, mas eu não conseguia sair de perto do passarinho, tão culpado estava por eu existir e ele não.

Restava ainda se livrar do corpo, prova desse crime que me colocava em vantagem insuperável sobre uma das obras mais perfeitas da natureza, essa criatura mítica capaz de voar e cantar como só os deuses saberiam. Meu filho sugeriu que enterrássemos o passarinho em algum lugar do terreno. Imaginei a cachorra farejando o esconderijo e aparecendo com a pobre ave entre os dentes. Não, Clarice, isso não é mais uma de minhas fantasias. Não faz muito tempo, tive que tirar-lhe da boca o corpo de outro passarinho, talvez mais um que teria se acidentado na vidraça. A cachorra o segurava não como um troféu ou um osso, mas como um brinquedo, parecendo divertir-se enquanto corria de um lado para outro balançando o rabo… Curioso, mas não me lembro de ter me emocionado com essa história. Pelo contrário, a cena só me remetia a uma necessidade higienista. O passarinho fedia e eu temia que a cachorra contraisse alguma doença. Teria sido essa memória que me motivou a tratar o novo passarinho com a mesma frieza?

Não se tratava de desprezo, de modo algum. Parecia muito mais indiferença. Eu precisava me livrar daquele corpo, que, rapidamente, iria iniciar sua decomposição. Foi então que me lembrei do que havia feito com o passarinho que tirei da boca de minha cachorra. Pedi para meu filho pegar um saco plástico e, enquanto isso, continuei ao lado de meu amigo passarinho, como se estivesse sem jeito para pedir-lhe desculpas, e ficar por mais alguns momentos a seu lado foi a maneira que encontrei para me perdoar pelo que faria em seguida. Acomodei-o dentro do saco, dei dois nós e depositei o pacote no cesto de lixo comum.

Clarice, passei o dia pensando no infortúnio do passarinho e em seu corpinho sem vida entre os restos de comida e pratos descartáveis. Ao dormir, resolvi escrever-lhe esta carta, talvez numa tentativa de livrar-me de vez do passarinho. No entanto, se Manoel de Barros estiver certo, meu sonho será vigiado por passarinhos. Espero apenas que possamos sonhar um mundo sem vidraças.

Carinhosamente,
Fábio Betti, São Paulo 19 de agosto de 2012

2 comentários para “Cartas inventadas para Clarice – vida de passarinho”

  • Waverli disse:

    Coloca adesivos nesta vidraça!!!! Os pássaros não veem os vidros das janelas, assim como os peixes não veem a água!

  • Mavern disse:

    na verdade, ele ne3o este1 minadjo… e9 sf3 o contorno da pedra le1 atre1s que de1 essa impresse3o. [4]bem… se olharmos direitinho…a camisa dele cobre o “passarinho” o que dar a impresse3o do short este1 “baixado” ou “arriado” (como dizemos aki em Recife)… ele ne3o este1 com nenhuma me3o prf3xima ao “passarinho”…enfim… essa foto precisa de um investigador do CSA!!!!!massss… valeu a intene7e3o ROBSeu ri!!!

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