Aliviando a consciência

sexta-feira, 12 outubro 2012, 22:29 | Tags: , , , , , , | Nenhum comentário
Postado por Fábio Betti 

Imagine, apenas como hipótese, imagine que a entrada no paraíso, a passagem para uma vida espiritual mais rica e proveitosa não seria condicionada pelo conjunto da obra, a historia de vida que você traçou, mas tão somente por seu estado de consciência no momento da transição. Você está cheio de culpa, tomado por pensamentos negativos, com um imenso peso nas costas e ainda… quer voar?

Aprendemos desde pequenos que a lei da gravidade não poupa a ninguém que tenha passado pela Terra. Tudo o que é pesado afunda. O que é leve talvez seja capaz de flutuar. Simples assim. Duro assim. Porque se você é alguém cheio de consciência pelas bobagens que fez ao longo da vida, uma consciência que, no entanto, se apega a suas memórias, não as deixa seguir na correnteza, já transformou tudo isso em mágoa ou culpa. Seja o que for, seja você quem for ou o que tiver feito, a lei é para todos: corpos pesados afundam. Corpos leves talvez flutuem.

A boa notícia é que você pode aprender a ir liberando aos poucos suas lembranças, ou seja, o que já está morto em sua vida, mas você acha ser capaz de ressuscitar e, por isso, não larga de jeito nenhum. Não larga o osso e, por isso, deixa escapar a carne. O que é vivo flui e, se nos apegarmos ao que já morreu, vamos perdendo a agilidade do fluxo, nos enrijecendo em ossos que, a um piscar de olhos, já terão virado pó. Por isso, é preciso aprender a abrir mão do que já não mais nos pertence, o passado, ou do que nunca viremos a ter, o futuro. Viver no presente é saber, em todas as células de seu corpo, que tudo é ilusão, porque tudo passa. Uma hora é tudo, em outra é nada. Ilusão ou realidade? Impossível saber no instante em que se vive o que se vive. Se você puder experimentar um instante, um ínfimo e fugaz instante de contato com a Verdade, já terá, talvez, experimentado o bastante para passar desta para, literalmente, melhor. Se o que importa é a consciência presente, um lampejo de iluminação pode salvar-lhe do inferno. Imagine apenas tudo isso como uma hipótese, mera teoria que se junta a tantas outras na tentativa de explicar o que não se consegue provar no domínio da ciência material, a ciência limitada ao mundo sensível. Imagine que consciências pesadas afundam, ou seja, consciências leves têm maior probabilidade de conseguir flutuar ao vento. Um instante e tudo se torna claro. Pode ser muito rápido esvaziar uma consciência secular na presença de um lampejo de luz. E você ascende, seu espírito flutua na espiral de seu desenvolvimento.

Fala sério, até que é uma hipótese interessante, né? Pois é, ela assim também me parece, tão nítida e cristalina se apresenta que meus olhos chegam a arder. O que a torna subitamente repulsiva é a possibilidade de que qualquer um, absolutamente qualquer ser humano que, na soleira do portal entre um mundo e outro, no instante exato dessa passagem, caso esteja com a consciência leve, estará ao seu lado, flutuando, flutuando leve e solto… Isso inclui o maníaco do parque, assassinos, estupradores, pedófilos, qualquer pessoa, sem qualquer distinção que se faça a ela. Chegou ao limiar com a consciência leve, terá seu lugar garantido ao lado de Deus, como qualquer um.

E agora você se horroriza? Você, tão trabalhada, tão espiritualizada, criatura tão esforçada em buscar a si mesma, em se entender, em se melhorar, está ali de mãos dadas com um estuprador de criancinhas indefesas. Ele está sorrindo para você, e você suspeita que é de deboche. Ele está sorrindo, porque entre você e ele, surpreendentemente, não existe mais nada que os separe, não há cultura, não há moral, não há geografia, não há nem corpo que os separe um do outro. Vocês são pura energia e não têm mais limites que os definam e os separem. Distinções são observações que fazemos do que percebemos do mundo. Só percebemos o mundo a partir de nós mesmos, de nossas próprias experiências, vividas sempre de forma única. Isso significa que a imagem que fazemos do mundo é só isso mesmo: uma imagem que fazemos do mundo, nossa própria visão de mundo, curta e limitada.

E você, que a vida toda se achou mais do que o outro, superior a ele, inatingível por ele, agora também é ele, e ele é você. Você que nunca considerou nenhum de seus atos de rebeldia “pueril” – claro, todos devidamente compensados por uma vida de grandes privações, sacrifícios em nome de uma carta de alforria aceita nos dois mundos. Você que nunca parou para avaliar-se um criminoso ao cometer atos ilegais, nunca se viu perto o bastante do estuprador de criancinhas para se ver nos olhos dele. Afinal, que mal há em comprar um produto pirata ou fumar seu baseadinho de vez em quando? Você nunca parou para pensar no longo caminho percorrido entre a terra fértil e sua inocente tragada. Quantas vidas perdidas, quantas guerras travadas, roubos, seqüestros, assassinatos? Para essa história, você mantém a consciência leve. Bom para você, pode lhe ajudar na hora que não se pode mais dar um passo atrás. Isso, no entanto, te faz igual ao estuprador de criancinhas. E aí, como se sente com essa constatação?

Durante uns três anos, fiz terapia com um grande profissional, Dimas Callegari, psiquiatra e psicólogo cheio de boas histórias e muita experiência de vida. De vez em quando, ele me levava, em meditação, a um cemitério. Pedia-me para falar o nome dos maiores criminosos que me vinham à mente. Eu pensava no maníaco do parque, em Jack, o estripador e outros desses criminosos assustadores. Eles estavam naquele cemitério, seus nomes luzindo nas lápides. Aí, ele me convidava a escolher uma cova qualquer e deitar-me nela. Nesse ponto, eu já começava a me sentir bastante desconfortável, ligeiramente relutante em aceitar o convite. E, no entanto, eu prosseguia. Deitado naquele buraco escuro, com os olhos fechados, eu precisava dizer: “Estou aqui, deitado nesta cova rasa, cova comum, e me sinto uma pessoa qualquer, eu sou um de vocês, sou, portanto, como vocês…”

Sem condição! Eu nunca conseguia chegar nesta parte, relutava, interrompia o transe, incomodado com a possibilidade de ele estar certo: não somos assim tão diferentes uns dos outros. Nem estamos tão separados quanto imaginávamos. A máxima Todos somos um pode estar certa e, se estiver, vale para todos mesmo.

Mas Dimas pode estar errado, e eu devo ter me enganado. Minha hipótese é só uma hipótese, e uma hipótese incômoda. Melhor escolher uma mais encantadora, mais bela e sobre a qual nos orgulharíamos o suficiente para seguir caminhando rumo ao cadafalso inevitável. Quem sabe assim cheguemos lá com a consciência leve como a de um estuprador.

Comentário

You must be logged in to post a comment.