Cartas inventadas para Clarice – basta dessa história de matar ou morrer!

terça-feira, 05 fevereiro 2013, 15:10 | Tags: , , , , , , , , | Nenhum comentário
Postado por Fábio Betti 

cabeca explodidaClarice, hoje fui acometido por uma sensação estranha, uma sensação que me calou a voz e custou a ser nomeada. Um misto de medo, desesperança e dúvida que, depois de pensar e pensar, emergiu como uma pergunta, uma dessas perguntas que nos devastam quando surgem e, provavelmente, por isso mesmo, não ousamos cutucá-las. Sabemos que elas estão ali, prontas a nos dar o bote, à espera de nos envenenar com seu poder de nos tirar o chão, arremessando-nos com violência no vazio das questões que não queremos responder.

Como é que eu faço para me motivar num mundo ainda motivado pela dicotomia do “matar ou morrer“?

Matar ou morrer! Luta conhecida, que já encarei muitas e muitas vezes. Diria até que o exercício cotidiano fez de mim um guerreiro competente, conhecedor das armas e das artes da guerra, com experiência de sobra nas táticas necessárias para derrubar o adversário e sagrar-se vencedor. No entanto, a brincadeira perdeu a graça, lutar não faz mais sentido. E eu, ao dar-me conta da perda de sentido no lutar, perdi também a inocência. Porque antes, eu lutava na ignorância de que o que eu fazia era o certo. Mais do que isso, eu o vivia como a única possibilidade. E, você bem sabe, Clarice, sou capaz de perdoar qualquer ato cometido na ignorância, até mesmo o suicídio, mas não consigo engolir o crime cometido conscientemente. Ao ganhar a consciência sobre a estupidez da luta, perdi a inocência. Não consigo mais lutar, pois meu inimigo já não é mais inimigo.

Onde estão meus inimigos para me salvar, Clarice, me salvar dessa rendição sem saída em que repentinamente me vejo?

Teria eu me transformado num idealista, no tipo do idealista que eu sempre critiquei? Falo do idealista inerte em ação, inconformado diante das injustiças do mundo, das desgraças pelas quais a humanidade se abate e se encolhe, mas incapaz de mover um dedo, um único dedo em direção a algo mais concreto do que palavras jogadas ao vento. Tenho medo, Clarice, de estar morando no alto de um fictício palanque, reclamando e declamando palavras de ordem qual um mantra repetido automaticamente ad nauseum, gritando para ouvidos que simplesmente não querem escutar.

Até mesmo os que dizem ouvir, na verdade, não escutam. Confessam-se cansados da luta injusta, porém, Clarice, quando os vejo no limiar da decisão, no momento em que não se pode mais ficar em cima do muro, naquela hora em que a vida nos empurra para uma escolha, o que vejo é um medo primitivo estampado em seus olhos. Ah, o horror! Mergulhados no coração das trevas, transformam-se em crianças desprotegidas e indefesas e, sim, correm freneticamente em direção ao paiol para se armar de novo. Armam-se para defender seus palácios, seus empregos decentes, suas rotinas robóticas, sua fictícia segurança, suas relações de novela. E agarram-se como se isso fosse a própria vida, a única realidade! Para mim, Clarice, é a própria ilusão. No entanto quando me percebo nesse mundo, ao lado de meus amigos amedrontados e armados até os dentes, sinto todo o peso que eles sentem. É esse mundo que paga contas, que compensa carências, que recompensa sacrifícios, que ocupa vazios da existência, que cala perguntas que nunca deveriam ser feitas.

E nós, Clarice, com essa mania de fazer perguntas, nos colocamos à margem do mundo, onde o ar é rarefeito e o empuxo do vôo em que nos atiramos luta contra a gravidade, resultando na promessa de um fim trágico.

Como estar neste mundo, onde, para se estar, é preciso aceitar a luta, é preciso escolher entre matar ou morrer?

Na minha opinião, trata-se de uma escolha incabível, pois quem escolhe morrer? Os loucos? Os mártires? Não quero ser mártir, não quero morrer, mas também não quero matar ninguém. Não quero destruir o outro para precisar existir. Para que eu possa realizar os meus sonhos, o outro tem que morrer? Não, ele não precisa morrer mesmo que discorde de todas as minhas ideias. Mesmo acreditando num mundo completamente diferente do meu, isso não torna o outro condenado de morte em meu tribunal. Mesmo os que não me aceitam e que odeiam tudo em mim, mesmo esses, se eu conseguir superar a dor de não ser amado, se eu der meus ouvidos a eles, acabam se tornando grandes parceiros. A realidade que eles defendem com unhas e dentes contra mim, como se nossos mundos fossem excludentes, a única forma de eu acessar essa realidade é através deles. Se eu os permito ser, eu amplio o meu mundo. Mas é tarde, preciso ganhar o pão, matar o leão, encarar a vida dura… Não, definitivamente, não é isso o que eu quero fazer. Não, Clarice, você sabe que não tenho medo da vida. Amo a vida e, por amá-la tanto, não quero mais contribuir para destrui-la.

E então, o que faço?

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