Querida Clarice, não sei se isso se passa a você, mas volta e meia, entro em conversas que se transformam em debates que, por sua vez, me levam a um espaço de enorme desconforto, na medida em que os sinto como uma dinâmica que só termina quando aparece um vencedor. E eu não quero vencer ninguém. Muito menos, quero ser derrotado. Qualquer desses resultados só me separa do outro. E eu não quero me separar do outro. Eu e o outro somos da mesma espécie, habitamos o mesmo planeta e, se de alguma forma, conversamos, somos um verdadeiro milagre num mundo quase infinito de possibilidades de encontros. Por que eu desperdiçaria esse evento tão raro escolhendo separar-me desse outro ser que simplesmente apareceu em minha vida? Apareceu em minha vida! Veja que coisa mais improvável isso, Clarice. Que vantagem eu teria jogando fora a oportunidade de aprender com o diferente de mim, que é o que faz do outro justamente outro?
Sabe, Clarice, eu já fui católico, já fui espírita, já me aproximei do budismo e, hoje, bem, hoje minha religião não cabe em nenhuma igreja. Isso não significa, no entanto, que eu não aceite que ao outro, isso ocorra. Só que na medida em que dou ao outro o direito de acreditar no que for, peço…não… exijo o mesmo direito. Parodiando uma frase sua, deixo o outro ser. Deixe-me ser então!
Da mesma forma, já circulei por diversas correntes políticas. Das que ainda permanecem no cenário brasileiro, digo com o maior orgulho que durante anos fui um simpatizante entusiasmado pelo PT e, por um período talvez semelhante, ocorreu o mesmo com o PSDB. Defendi cada partido enquanto a ele me sentia conectado e, ao refletir sobre a forma como vivi esses relacionamentos, confesso que não fiz de maneira distinta da que meus amigos fazem hoje. De certa forma, mostrei unhas e dentes para defender minhas convicções políticas. Imagino, com isso, quantas separações provoquei sem saber que o fazia. Assim, creio que posso dizer que entendo meus amigos. Não sou um ser puro ou sequer evoluído para apontar-lhes o dedo da justiça. Longe disso. Só que, quando eles escolhem ficar de um lado, não sei ao certo onde me colocar, porque meu lado não é fixo. Por exemplo, sempre fui um feroz crítico do Bolsa Família, mas uma conversa com uma amiga, que se transformou em um debate e acabou num diálogo, permitiu-me ver um lado que, antes, eu não via. E, mesmo que eu não tenha me transformado num defensor do programa, acabei por reconhecer nele o valor que me pareceu ter para os que viviam no limite extremo da pobreza, muito próximos da morte por inanição. Desde então, ao referir-me sobre ele, já não o faço mais desde um único ponto que o generalize.
Como meu lado não é fixo, sinto-me igualmente à vontade para elogiar o prefeito de São Paulo, Fernando Haddad, do mesmo partido que criou o Bolsa Família, quando ele cria um programa que humaniza o dependente de crack. Com a mesma tranquilidade, o critico quando ele escolhe como secretario de Transportes uma pessoa ligada a empresas de ônibus e, visivelmente, privilegia essa modalidade de transporte a todas as outras.
Meu lado não é fixo, o que não quer dizer que eu também não tenha ideias. Habito o mesmo planeta, sou refém do mesmo sistema nervoso que não tem como especificar, com precisão, se aquilo que nos acontece é, no momento em que nos acontece, ilusão ou realidade. Vivo, portanto, como qualquer pessoa, construindo a realidade a partir de minhas próprias visões de mundo e se equivocando e aprendendo a cada instante. Muitas dessas visões, de fato, mudam – e como mudam. Algumas, no entanto, vêm resistindo ao tempo. Não sei ao certo o quanto são minhas, o quanto vieram com minha educação básica, com os valores que recebi e acolhi de minha família e os que aprendi convivendo com tanta gente que tem aparecido em minha vida. O que importa é que hoje elas estão comigo e guiam o que faço e o que falo.
Como citei aqui religião e política, vou pelo menos revelar minhas crenças sobre esses dois temas. Creio que o princípio que nutre qualquer religião é o amor. Se isso estiver correto e, como minha atual religião é o amor, sendo o amor uma dinâmica relacional onde eu e o outro emergimos como legítimos, posso aceitar qualquer religião que cultive esse princípio. Por outro lado, quando uma religião começa a conservar um outro princípio, contrário ao amor – por exemplo, a intolerância ou a exclusividade sobre a verdade – , não temos como conversar. Isso porque esse princípio transforma o outro que não pensa da mesma forma em inimigo. E, sem necessidade alguma de consultar o dicionário, inimigo é o oposto de amigo. Quando o outro escolhe, portanto, ser meu inimigo, ele também escolhe separar-se de mim.
No campo da política, passa-se algo um pouco distinto. Observo em mim um comportamento mais intolerante, e uma intolerância específica. Sou intolerante com políticos e servidores públicos que desviam verbas em proveito próprio ou de seus partidos. E sou especialmente intolerante com regimes autoritários que, em suas dinâmicas relacionais de cerceamento da liberdade nos mais diferentes níveis, se perpetuam na forma de ditaduras. Nesse aspecto, não consigo validar o governo cubano e comemoro cada vida que escapa a esse domínio, seja pelo meio que for.
Não queria falar sobre o tema das organizações empresariais, Clarice, pois, você sabe, tiro meu sustento trabalhando para elas. No entanto, mesmo que eu já tenha feito coisas das quais hoje me envergonho, também sigo princípios muito semelhantes aos que pratico nos campos da religião e da política. Por exemplo, simplesmente, não trabalho para organizações que me procurem com a intenção explícita de criar ou intensificar mecanismos que aumentem o controle, a cobrança, a obediência ou o que quer que esteja ligado à manipulação das pessoas. Sou uma pessoa e não gosto que me controlem, que me cobrem e que me obriguem à obediência. Definitivamente, não gosto que me manipulem. Por que então eu iria querer isso para outra pessoa?
Carinhosamente,
Fábio Betti
São Paulo, 05 de fevereiro de 2014.
Belo texto!
A gente ainda tem um pouco de dificuldade de lidar com a diversidade, não é? ok, ok, não estou simplificando as coisas, mas as colocando de uma forma mais suave para lidar melhor com ela – o respeito ao outro, ou a ideia do outro, passa pela condição pessoal de lidar com a opinião do outro sobre nós. Deve ser por medo do desajuste, de não se sentir amado. No fundo, tudo volta para a capacidade de dar e receber amor.
Vivi, você tocou no ponto nevrálgico deste artigo e de muitos outros que tenho publicado por aqui: a nossa e, em especial, a minha dificuldade em aceitar a diversidade. Porque, na medida em que afirmo minhas crenças – por exemplo, minha visão sobre o regime cubano -, muitas vezes, eu também assumo um comportamento de intolerância, na medida em que não tolero quem não me tolera. E essa é uma reflexão importante para mim: como aceito como um legítimo outro até mesmo quem não me aceita?
Adorei essa parte e acho que resume o sentimento: “Vivo, portanto, como qualquer pessoa, construindo a realidade a partir de minhas próprias visões de mundo e se equivocando e aprendendo a cada instante.”
Obrigado pelo comentário, Livia! Essa frase para mim é uma espécie de mantra, que eu repito em quase todos os meus textos, mas mudando algumas palavras…
Hehe, acho que todos nos deparamos com a necessidade de virar algumas chavinhas e resignificar algumas crenças antigas em vários momentos da vida. É um ótimo mantra.
Muito legal.