Cartas inventadas para Clarice – Nem santo nem demônio

terça-feira, 25 março 2014, 16:48 | Tags: , , | 2 comentários
Postado por Fábio Betti 

santo demonioClarice, aposto que você teria adorado ir a minha festa de aniversário no banco de sangue, com toda aquela gente ajudando a aliviar um pouco a vida de quem está por um fio. Mas passado o desfile interminável de elogios pelo “gesto nobre e altruísta”, ficou uma sensação estranha, uma espécie de ressaca, que me fez recorrer a você na esperança de curá-la.

Foi uma emoção indescritível ver familiares e amigos de várias turmas chegando para me cumprimentar e deixar uma bolsinha de sangue.

Tinha bexigas, Clarice, tinha palhaços, bolo e sorrisos de sobra, apesar das agulhadas nem um pouco agradáveis e uma ou outra tontura.

Todo mundo tirando fotos e postando no Facebook, numa corrente que ia aumentando minuto a minuto, chegando a centenas de manifestações.

Confesso que, no começo, fiquei todo envaidecido quando me vi no centro desse movimento. Uma amiga escreveu um texto lindo e publicou em seu blog. Outros dois disseram que iriam copiar minha ideia e também comemorar o aniversário num banco de sangue. No entanto, justamente ao tomar consciência desse espaço que, repentinamente, eu ocupava, o doce do bolo foi substituído por um gosto amargo, uma sensação de não merecimento, pela culpa de talvez ter errado na tinta a ponto de criar a ilusão do mártir, do ídolo, do guru a ser seguido.

Rajneesh Chandra Mohan Jain, que acabou ficando conhecido simplesmente por Osho, talvez um dos gurus mais controversos que já passou por esse mundo, vivia dizendo em alto e bom som para que ninguém o seguisse. Krishnamurti, seu conterrâneo, preparado desde a infância para ser o grão-mestre da secular Sociedade Teosófica, dissolveu a organização no dia em que seria empossado, justificando que nenhuma organização deveria ser fundada para induzir ou coagir as pessoas a um determinado caminho. “A partir do momento que você começa a seguir alguém, você deixa de seguir a verdade.”

Eu sabia muito bem que não era digno de ser seguido por ninguém, Clarice! Pelo menos, não como o santo que as pessoas passaram a pintar em comentários onde eu já não mais me via em minha totalidade de ser humano imperfeito, falível e cambaleante nessa vida, como escreveu Shakespeare, tão cheia de som e fúria. De repente, não havia mais espaço para o Fábio humano, só para o Fábio idealizado. E numa tentativa de me redimir para mim mesmo, me devolver a humanidade sequestrada, resolvi fazer o que você fazia tão bem, Clarice: não aceitei o rótulo e reagi com uma provocação, um golpe baixo. Postei uma pergunta irônica no mesmo Facebook, onde a imagem de santo era tecida: “Pareço legal, mas ando de moto no corredor de ônibus. Onde está o erro?” O que aconteceu? Fui quase que completamente ignorado. E quem ousou responder a pergunta, parece não a ter entendido. O erro está no “mas”. Pareço legal “e” ando de moto no corredor de ônibus. Pareço legal “e” compro DVDs piratas. Pareço legal “e” minto de vez em quando. Pareço legal “e” nem sempre gosto das pessoas. Pareço legal “e” faço, sim, muitas coisas condenáveis. E esse aparente paradoxo não é, Clarice, como você bem sabe, trivial, é o que me faz humano.

Tenho um amigo que me condena por comprar DVDs piratas, mas que, estando em minha casa, não deixa de assisti-los. Conheço gente que julga a quem comete pequenos delitos no dia a dia, mas fuma seu cigarrinho de maconha tranquilamente e sabe muito bem que, com isso, contribui diretamente para o fortalecimento do crime organizado. Outro dia, eu mesmo – esse sujeito que compra filmes piratas e anda de moto no corredor de ônibus – incitei à execração pública a mulher que havia estacionado seu carro na vaga de deficientes. E agora me dou conta de que fiz com ela exatamente o que fazem comigo quando me julgam santo ou demônio por atos isolados nesse meu caminhar trôpego. E aí me pergunto mais uma vez por que nos é tão difícil reconhecer o outro e a si mesmo como nem uma coisa nem outra, mas simplesmente humano?

2 comentários para “Cartas inventadas para Clarice – Nem santo nem demônio”

  • Ana Luiza disse:

    Ah, Fábio, acho que você talvez tenha nos interpretado mal, sabe? (ou talvez eu deva dizer só por mim, mas pelo menos por mim…). É justamente por ser humano, falível, com defeitos e sujeito a problemas, que a sua ação se torna ainda mais incrível. Você não sugeriu que fosse seguido, simplesmente tornou-se exemplo. Acho que agora essa cópia da sua ideia por outras pessoas (a minha amiga Raquel, por exemplo) está mais para “desapega, que o filho agora é do mundo” do que para “vamos todos seguir qualquer coisa que o Fábio fizer”. Entende?
    Você nos deu um exemplo de que nós todos, seres humanos igualmente falíveis e cometedores de erros a todo instante, podemos fazer coisas boas, podemos ter ideias geniais que salvarão vidas. Você mostrou certamente a vários entre os 51 doadores desse dia – alguns marinheiros de primeira viagem – que doar sangue é tão simples quanto importante.
    Você, ser humano com seus problemas e que anda de moto na faixa de ônibus, nos mostrou algo de bom dessa humanidade. E a gente reconheceu e aplaudiu (até pra que ressoe mais em nós e que possamos mostrar também os nossos lados bons). A gente aplaudiu pra comemorar as 51 bolsas com você, pra comemorar o seu aniversário, pra ecoar a coisa boa tanto que ela fique impregnada em nós mais do que todas as notícias ruins de todos os dias. E que mal há nisso? 😉

  • Fábio Betti disse:

    Obrigado por seu comentário, Ana Luiza. Um abraço carinhoso!

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