Ano que tem Copa do Mundo em casa – depois de 64 anos! – e eleições para presidente é complicado. E complica mais ainda quando a seleção canarinho é eliminada do jeito que foi e um candidato morre em um acidente aéreo onde nem a gravação da caixa preta se salvou. Isso sem contar a fila interminável de personalidades que se formou às portas do céu. Tudo ao mesmo tempo agora. Tamanha carga emocional talvez justifique a quantidade de gente apelando à razão. Nunca vi tanto argumento racional para defender tudo quanto é ponto de vista. E quando os argumentos falham na tentativa de convencer o outro – sim, porque não basta acreditar em alguma coisa, o outro também tem que acreditar na mesma coisa -, a acusação é imediata: “Você está agindo com a emoção”. O que equivale a dizer que aquele que faz tal acusação é racional e, portanto, está certo no que diz, e o outro, por exclusão, está errado, e justamente por agir emocionalmente. Não quero ser um estraga-prazeres, mas sinto-me no dever de esclarecer que ninguém – nem o que acusa o outro de agir com emoção, nem o que, supostamente o faz – são de fato capazes de agir de modo racional. E para os que já se impacientaram com essa afirmação, aqui vai uma explicação curta.
Com a palavra, o doutor Humberto Maturana, biólogo chileno considerado o maior cientista vivo em cognição, no texto publicado em 1989 que reúne duas de suas palestras intitulado “Emocões e Linguagem na Educação e na Política”: “As premissas fundamentais de todo sistema racional são não-racionais, são noções, relações, distinções, elementos, verdades, que aceitamos a priori porque nos agradam. Em outras palavras, todo sistema racional se constitui como um construto coerente a partir da aplicação recorrente e recursiva de premissas fundamentais no domínio operacional que estas premissas especificam, e de acordo com as regularidades operacionais que elas implicam. Quer dizer, todo sistema racional tem um fundamento emocional. Pertencemos, no entanto, a uma cultura que dá ao racional uma validade transcendente, e ao que provém de nossas emoções, um caráter arbitrário. Por isso é difícil para nós aceitarmos o fundamento emocional do racional, e pensamos que isso nos expõe ao caos da irracionalidade, onde tudo parece ser possível. Acontece, entretanto, que o viver não ocorre no caos, e que há caos somente quando perdemos nossa referência emocional e não sabemos o que queremos fazer, porque nos encontramos recorrentemente em emoções contraditórias.”
Sei que o texto não é fácil de ser compreendido – linguagem de cientista é phoda! – e que coloca em xeque toda uma crença secular no ser humano como um ser racional e objetivo, o que significa que qualquer tentativa de explicá-lo em poucas palavras poderá ser considerada uma heresia para os que, como eu, estudam Maturana. Por isso, começo por contar uma pequena história envolvendo o biólogo chileno e um de seus amigos ilustres, o Dalai Lama, que, de uma forma bem própria, atestou o trabalho de décadas de Maturana. Em novembro de 2013, o biólogo foi visitar o Dalai, a pedido deste, para conversarem sobre educação. Este foi o terceiro encontro entre os dois. A partir do que escutei de uma testemunha desse acontecimento, desde o primeiro encontro entre os dois, sua santidade vem agradecendo a Maturana pelo biólogo ter, finalmente, fundamentado cientificamente algo que é um princípio fundamental da filosofia budista: o desapego. E Maturana o fez ao explorar os mistérios do funcionamento do sistema nervoso, demonstrando, por meio de uma série de experimentos, que o sistema nervoso é um sistema fechado determinado por sua estrutura, o que significa que ele vive tudo como verdade no instante em que vive, só conseguindo distinguir entre percepção e ilusão ao comparar experiências, ou seja, a posteriori. Em outras palavras, aos olhos de um observador, um ser humano, que é um organismo dotado de um sistema nervoso que opera de modo fechado e é determinado por sua estrutura, não tem como evitar equívocos enquanto vive, e só é capaz de distinguir entre percepção e ilusão porque, além de um ser biológico, é um ser humano e, como tal, está imerso na linguagem sendo, portanto, capaz de refletir sobre o seu viver a partir das coerências de seu próprio viver. Isso implica em que:
1. Nosso conceito de mundo é a visão que temos dele e, portanto, há tantas visões quantas pessoas que o percebem
2. Cometemos equívocos frequentemente e, no instante em que o fazemos, não somos capazes de perceber que os cometemos – algo só possível a partir da comparação com uma experiência a posteriori
3. Conversar sobre certezas e verdades é negar nossa natureza não apenas como seres biológicos, mas também como seres culturais, na medida em que, quando distinguimos uma experiência a posteriori entre percepção e ilusão, o fazemos desde nossa cultura – nossas crenças e valores -, os quais, sendo fruto de redes de conversações criadas a partir do conviver na linguagem entendida como coordenações de emoções, sentimentos e afazeres, também é, por sua vez, viva e, portanto, “errante” e mutante.
Essas implicações posicionam o diálogo como uma dinâmica relacional onde é possível aos que dela fazem parte serem a si mesmos, ou seja, seres biológico-culturais reconhecidos e aceitos como legítimos outros em suas visões particulares e subjetivas – não objetivas! – de mundo. Isso quer dizer que o diálogo, diferentemente do debate, que se orienta por buscar uma única razão, permite criar um espaço onde as diferentes percepções de mundo emergem na linguagem e, por meio dela, cada um possa ressignificar suas próprias visões de mundo, se abrindo para a possibilidade de que novas visões de mundo emerjam dessa conversa.
Com isso tudo, da próxima vez que lhe acusarem de agir com emoção, agradeça e pergunte se o acusador tem tempo para ouvir a resposta longa ou se ele prefere a resposta curta. De qualquer modo, adiante: para quem acha que está coberto de razão, uma conversa perturbadora como essa pode deixar as tais razões à flor da pele.