O fanático intolerante em mim

segunda-feira, 12 janeiro 2015, 23:11 | | 1 comentário
Postado por Fábio Betti 

Foto lobo carneiroEnquanto os ânimos se acirravam em torno do atentado ao jornal francês Charlie Hebdo, optei por manter-me em silêncio não porque não tivesse mais o que falar sobre o episódio e suas implicações ou porque discordasse diametralmente dos pontos de vista defendidos, mas simplesmente porque o tema me levou a um espaço reflexivo que já frequentei em diversas ocasiões e onde me vejo enredado em um dilema aparentemente insolúvel: quando defino que algo é intolerável – por exemplo, um atentado à vida, eu chamo de intolerável, como também posso chamar um determinado tipo de humor e, especificamente, o humor que vinha sendo praticado pelo Charlie Hebdo, de intolerável – não estou agindo e sendo exatamente o que condeno? Quando não tolero, desde os meus próprios critérios, aquilo que o outro faz, não seria eu também um intolerante, um fanático?

Embora nada possamos dizer de uma realidade objetiva, universal, única, muitas vezes falamos e agimos como se de fato assim fosse. No entanto, tudo o que é dito é dito por um observador, um observador que possui um sistema nervoso que funciona de modo fechado e não consegue distinguir se aquilo que vive a cada momento é ilusão ou realidade.

Sempre descrevo a realidade que me cerca a partir de minha própria visão de mundo, de minhas crenças, de meus valores – eu argentino, eu filho de ingleses, eu feminista, eu jornalista, para quem, aliás, a liberdade de expressão costuma ser encarada como um direito sagrado, universal, mesmo que venha a ofender profundamente algumas pessoas e grupos. Quando afirmo que algo é intolerável, falo isso a partir de mim mesmo e não de uma realidade que exista independente de mim e, dessa forma, me coloco exatamente nesse espaço do fanático e do intolerante que desprezo, falando em nome de uma verdade única, a minha verdade.

Foto DilmaPor outro lado, essa reflexão me revela não uma visão estanque de mundo, mas uma visão completamente fluídica, orgânica, instável, mutante. Por exemplo, me indignei quando, no dia da posse da presidente Dilma em seu segundo mandato, deparei-me com uma foto dela ao lado de um botijão de gás. Indignei-me porque vi ali um ato covarde de bullying contra a pessoa da presidente, uma crítica cruel sobre sua condição física. E isso me incomodou profundamente mesmo não sendo minimamente simpático a Dilma presidente. Comoveu-me o que entendi como um ataque a Dilma pessoa. E me coloquei imediatamente em sua defesa, direcionando minha crítica às pessoas que compartilhavam esse tipo de comentário. Agora, ao refletir sobre o que vivi, me pergunto se minha reação não teria a ver com a cultura de respeito aos mais velhos, que aprendi desde pequeno com meus pais e avós. Menos de 15 dias após esse episódio, assistindo a um telejornal, me deparei com uma situação análoga. Várias celebridades presentes no prêmio Globo de Ouro foram vítimas de comparações, a meu ver, igualmente grosseiras e de mau gosto, como a atriz Julianne Moore, de quem, a propósito, sou um profundo admirador. E, no entanto, a imagem comparando o vestido da atriz a um espanador não me provocou qualquer indignação ou comoção.

Foto JulianneDo ponto de vista da “realidade objetiva”, as duas situações poderiam ser consideradas semelhantes. Mas, tendo em vista – e esta é minha crença – de que nada de fato é objetivo, uma situação não tem nada a ver com a outra, posto que o significado não está na situação em si mas em mim. Sou eu quem atribui significado a cada uma das situações. Na primeira, fui intolerante. Na outra, indiferente.

Então, quando olho para o Charlie Hebdo e para os franceses, imagino que talvez eles vejam um mundo de uma forma bem diferente da forma como eu vejo, como muitos brasileiros veem. Não sou francês, não sei o que seja essa experiência, apenas imagino que possa existir uma outra forma de enxergar o mundo, baseado na contestação de que eu mesmo me vejo em diferentes formas de enxergar o mundo, formas que têm a ver com minha cultura, meus valores, minha formação, mas que também têm a ver com a circunstância, com o contexto no qual me encontro a cada momento – como é o caso, por exemplo, das comparações entre os vestidos da presidente Dilma e da atriz de Hollywood, que me gatilharam emoções de natureza completamente distintas.

Foto NigeriaDa mesma forma, me pergunto por que os ataques na cidade de Baga, na Nigéria, ocorridos poucos dias após o episódio em Paris, não tenham levado a mim e as outras pessoas que se mostraram tão indignadas com o ataque sobre o periódico francês, a uma comoção correlata. Seriam as vidas ceifadas na Nigéria de menor valor do que aquelas de Paris? Por que o mesmo grupo – eu incluso – que se ocupou de conversas intermináveis sobre o atentado em Paris não fez qualquer menção ao que se deu em Baga? Não vi nenhum ato de indignação e solidariedade para com os nigerianos, nenhum “Somos todos Baga”. Se, de fato, houvesse uma realidade objetiva, o que ocorreu em Baga teria sobrepujado muitas e muitas vezes a repercussão do caso do Charlie Hebdo. No atentado de Paris, morreram no total, incluindo as vítimas, os terroristas e reféns, 19 pessoas. Em Baga, estima-se mais de dois mil mortos –duas mil pessoas que, como espetáculo midiático, valem menos que os 19 de Paris.

Não sei se estou relativizando demais tudo o que está acontecendo, mas para mim os episódios de Paris e Gaba funcionam como um grande convite para uma reflexão que começa e termina em mim, em meu próprio comportamento. Ao olhar para meu próprio viver, deixo de ser comentarista do mundo, comentarista da vida, comentarista do que acontece com os outros, para olhar para mim mesmo e me perceber algumas vezes tão sarcástico e desrespeitoso quanto os humoristas do Charlie Hebdo e, em outras ocasiões, tão terrorista quanto aqueles que os mataram. E faço isso através das palavras que disparo como uma metralhadora, escancarando minha incapacidade de tolerar os outros e, possivelmente, de modo análogo aos mortos de Paris – humoristas e terroristas -, defendo minha intolerância com argumentos inquestionáveis, como se fossem de fato objetivos e racionais, posicionando o meu não tolerar num espaço inalcançável, inquestionável, quase que sagrado, na medida em que é “a” verdae. Meu não tolerar é justo, inocente e racional, o dos que não agem e pensam como eu pertence ao domínio dos fanáticos e intolerantes.

Um comentário para “O fanático intolerante em mim”

  • nelson Chapira disse:

    Resumindo, querido, pimenta, no olhar alheio, no nosso pode ser colírio. Somos todos Gaba. Somos mesmo? Ou Charlie? Ou, sem nossas categorias definidoras e protetoras, o que somos?

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