Uma morte bem morrida

quarta-feira, 08 setembro 2010, 18:08 | | 2 comentários
Postado por Fábio Betti 

Não sei o que está acontecendo, mas tenho observado que a morte anda meio sem respeito pela espécie humana. Se já não bastasse ter se transformado em show diário na televisão, agora ela deu para aparecer bem perto, ali na esquina, e o que parecia uma ficção entre uma novela e outra, de repente, irrompe bem na minha frente, sem sangue de ketchup, make-ups cinematográficos ou qualquer outro efeito especial que a disfarce. Assim, nua e crua, a morte me parece feia e injusta, e ela não está nem aí para o que penso dela. Ri na minha cara como se a dizer que, em breve, irá me buscar. Em meu íntimo, espero que ela se atrase tanto que eu já até me esqueça de novo de sua existência. Só que agora é para ela que eu fito quando, triste e impotente, observo seu poder já não mais apenas sobre os corpos anônimos desumanizados pelos noticiários, mas sobre pessoas que caminham ao meu lado. Ela aparece com suas garras mortíferas interrompendo a vida de amigos e parentes e, estranhamente, me identifico com eles, como se este cerco também estivesse sobre mim.

Paro para pensar e, surpreso, concluo: a morte, de fato, me acompanha. Sinto-a, lado a lado, enquanto caminho. Às vezes, acho que ela irá levantar sua foice e desferir-me o golpe fatal. Em outras ocasiões, aperto o passo, deixando-a para trás. Mas sua presença em minha vida já não pode mais ser ignorada. Além das inúmeras vezes onde, consciente ou inconscientemente, fui ao seu encontro com a coragem estúpida dos suicidas, agora a cada passo que dou para frente, sinto-a claramente dar mais um em minha direção. Percebo seus movimentos nos sinais que revelam o lento declínio de meu corpo ou na imensa sombra que ela produz em pessoas do meu convívio.

A cada conhecido que ela abraça, torna-se a mim também um pouco mais conhecida. Um ela pegou com um tiro, outro num acidente, agora estende seus tentáculos a mais um por meio do câncer. Se ando nas ruas perigosas de São Paulo, também posso levar tiro; se resolvo dar uma volta de moto, um acidente fatal me espera no corredor entre os carros; se fumei por mais de 10 anos, uma única célula cancerosa pode querer acordar um dia desses…

O avião pode cair. Posso morrer de susto. Ou de nervoso. Pior, de desgosto. Talvez eu contraia uma doença rara e incurável. Talvez eu engasgue com um caroço de azeitona ou um reles milho de pipoca. Uma onda na praia pode me levar para sempre…

Posso evitar comer carne, nunca mais colocar um cigarro na boca, fazer ioga e meditação, caminhar todos os dias, mas nada disso vai, na verdade, garantir que o encontro fatal seja adiado…

E, apesar de tudo isso, decido viver. E decido de novo e de novo e, quantas forem as vezes que me perguntar, continuarei decidindo viver. Não escolho morrer, mesmo que, para isso, não me caiba qualquer escolha. E aí talvez seja a razão maior pela qual nem penso em largar os pontos, entregando-me aos braços que, em algum momento, certamente virão me buscar. Não tenho poder algum sobre ela, a morte. Como não têm os desesperados e os moribundos.

Aliás, da mesma fora como qualquer desesperado ou moribundo, tenho poder apenas pela própria vida. A diferença entre o que foi diagnosticado com uma doença fatal e eu reside apenas na notificação. O fato de eu ainda a não ter recebido não me torna mais imune à morte, nem sequer que eu viva por mais tempo do que aquele que recebeu oficialmente a sentença. É só uma questão de burocracia. Por isso, só me resta decidir viver. Viver bem a vida que eu tiver. Viver bem uma vida de posses ou viver bem uma vida de carência. Não importa. Viver a vida que cada um tem para viver, mesmo porque também não se pode escolher viver a vida do outro. E desejar viver a vida do outro não costuma fazer a vida de ninguém nem um mínimo que seja mais fácil de ser vivida.

Quem sabe se, por escolhermos viver bem nossas vidas, quando ela vier, ao invés de nos sentirmos minúsculos feito bebês abandonados, possamos olhá-la de cima, com a altivez de quem não a teme mais?

Quem sabe, assim, antes mesmo que ela nos engolfe, a gente escape por entre seus dedos e sem dor, sem medo, sem angústia ou qualquer lamento, a gente possa escolher mais uma vez viver?

E aí, quem sabe, a gente caia na gargalhada, ao ver a cara de boba da maldita segurando aquele corpo sem vida e sem valor que já não mais nos pertence e que, por isso mesmo, não vamos ter o menor pudor de deixar para trás?

Quem sabe…

Que eu e os que estão na minha frente na fila saibamos e mereçamos ter uma morte bem morrida. Esse é o meu desejo – e aí morte alguma pode me proibir de desejar.

2 comentários para “Uma morte bem morrida”

  • Marcia disse:

    Fábio,
    Olá. Gostei muito do seu texto, veio em uma hora bem propícia, acabo de perder uma pessoa muito querida em um assalto, enfim os detalhes são tristes, já não quero comentá-los. O fato é que procura algo aqui na internet e deparei com o seu texto…é não é que te conheço…poxa faze algum tempo, eu sou a Márcia, mãe do Gabriel Bittante do badminton. Mande um beijo grande para a Claudia e os meninos.
    abraço e obrigada pela leitura, você tem um talento incrível.
    Marcia

  • Fabio Betti disse:

    Puxa, Márcia, lamento pela perda que você teve. Mas fico feliz em saber que você está por perto. Mande um beijo para o Bitante. Vocês dois fazem falta nos torneios de Badminton. O último ocorreu nesse fim de semana, e a novidade é que o Pietro está praticando e já é o número 1 da categoria sub-9!

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