Cartas inventadas para Clarice – arte onírica à beira mar

domingo, 13 janeiro 2013, 11:26 | Tags: , , , , , | 2 comentários
Postado por Fábio Betti 

Arte onirica a beira mar_1Querida Clarice, o mar aqui é tão vasto e perfeito que minha vista não sustenta mirá-lo por muito tempo. Aliás, o próprio tempo também me parece vasto e perfeito demais para sustentá-lo. Ele não cabe no relógio, rebelde qual um cavalo selvagem, não se permite aprisionar-se na apertada caixa de cristal e engrenagens atada ao meu pulso. Abandonei-o, inútil o relógio, numa gaveta qualquer. Com o coração aos tropeços, sem relógio, sem sinal de Internet ou celular, muito longe de casa e sem me importar com o que acontece na televisão, rendi-me ao sabor dos ventos, das marés e do lento caminhar do sol, que parece ser o único por aqui capaz de revelar os mistérios do tempo.

Tenho sonhado muito, todas as noites. Nós bem sabemos, Clarice, que um sono sem sonhos não existe. O que há é sono sem lembranças. Vivos estamos, sonhamos. E sonhamos às vezes até acordados, como neste exato momento em que te escrevo e, num estalo inaudível de tão curto, me deixo levar pela imaginação desse vasto oceano que veio se apresentar a mim num mar verde esmeralda cuja única onda a bater na praia, de repente, se torna ensurdecedora.

Arte onirica a beira mar_2Escrevo de um escritório improvisado debaixo de um chapéu de sol, essas árvores que são plantadas, seja por Deus, seja pelos homens, para deleite dos que precisam de uma sombra de vez em quando. Sem qualquer conexão, a não ser lembranças, com o mundo que deixei em São Paulo e ainda sem um plano traçado para nossa viagem de volta, não tenho alternativas a não ser viver o que se me apresenta. Está certo, Clarice, tenho sim outras alternativas. Poderia escolher não viver, mas a beleza de tudo a minha volta e dentro de mim é tão imensa que não consigo me ver cometendo tal sacrilégio. Neste aspecto, viver não me parece uma escolha, mas simplesmente a única coisa que me sinto capaz de fazer neste momento.

Os sonhos que sonho à noite, não consigo tecer uma linha que os una de alguma forma, um padrão que os classifique. Eles vão e vêm e apenas revelam os muitos aspectos de um eu multifacetado, um eu como outro eu qualquer, como o seu eu, Clarice, como o eu de alguém que jamais iremos conhecer, porém tão complexo e misterioso como qualquer eu que possamos imaginar. Os sonhos sonhados de dia, estes, já parecem ser de outra tecitura, seguir a uma ordenação aparentemente mais clara, diria até, lógica.

Não, definitivamente, Clarice, não se trata de mais um devaneio de uma mente que dorme mesmo que o corpo se mostre acordado. Você sabe do que estou falando. Falo dos códigos que a natureza, vez ou outra, nos mostra num relance e, mesmo que não consigamos mergulhar em sua programação, acabamos por compreender sua essência e expressá-la com os recursos que temos fora das amarras da lógica humana.

Poesia, pintura, escultura, música, a arte é a língua que a natureza escolheu para expressar-se conosco. Diria até que a arte é a língua que ganhamos para expressar nossa própria natureza. A natureza que está fora também está dentro. E caminhando com minha companheira pelas areias multicoloridas que a única onda do mar verde esmeralda vem lamber com estrondo, cadenciando o tempo que o sol move suavemente, chamou-nos atenção as infinitas formas de vida que emergem do nada quando abaixamos nossos olhos para onde seguem nossos pés. Basta deixar a vista leve, livre de qualquer foco ou pensamento e a natureza bruta se revela em obras de arte em constante mutação.

Não pinto, não esculpo, não tiro música de nenhum instrumento, a não ser das palavras. Mas, você sabe, Clarice, até mesmo para um profissional das palavras, as mãos tremem vacilantes frente ao que parece não caber na linguagem aprendida com os homens. Por sorte, eu carregava minha câmera. Não, não foi sorte, mas intuição. A câmera se alojou em meus ombros pela tira larga que a prendia e me conduziu para uma exposição que, a cada instante, se modificava, seja porque uma onda vinha e borrava um quadro, criando outro, seja porque os olhos, como que pincéis, mudavam de rumo e acabavam por descobrir outras obras. Os sulcos criados pelas ondas transformaram-se em árvores delicadas, que, agrupadas, formavam florestas densas. Algas, conchas, pedrinhas banhadas pelo entardecer eram joias raras de tão belas e perfeitas. Das formações rochosas, emergiam olhos, rostos, corpos em movimento, pinturas rupestres realizadas em conjunto pela terra argilosa, pelo sal marinho trazido pelos ventos e pelos raios de sol.

Para provar que não se trata de mais um de meus devaneios, Clarice, compartilho com você algumas dessas imagens. Será que só eu vejo o que vejo?

Carinhosamente, Fábio Betti, em Ponta de Corumbau, 06 de janeiro de 2013.

Arte onirica a beira mar_retrato_1

Arte onirica a beira mar_retrato_2

2 comentários para “Cartas inventadas para Clarice – arte onírica à beira mar”

  • Shirley Yamaguchi disse:

    Ganhei o direito de dizer: Definitivamente, Fabio Betti Salgado…VOCE É O CARA!!!
    Que lindo!! Devorei cada palavra!!! E me senti no Paraíso, com voces!!! PARABENS!!!

  • Fabio Betti disse:

    Era o paraíso mesmo, querida Shirley, mas isso aqui é só uns 0,01% das fotos que tirei. Quando tiver tempo, irei organizar tudo o que fotografei – tem coisa ali no meio de cair do queixo, pode acreditar! Beijos

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