Nenhuma palavra possui um significado intrínseco e, portanto, não pode ser especificada por sua etimologia ou outros critérios de validação unilaterais se o que se deseja é o entendimento entre quem a diz e quem a escuta. Como canta o compositor brasileiro Zeca Baleiro na música “Lenha”, se nem eu sei exatamente o que que quer dizer o que vou dizer, impossível especificar o que o outro ou a outra escuta do que estou dizendo. A reflexão descrita nesse artigo foi motivada por um debate, do qual fui parte ativa, ao redor das distinções entre as palavras conversa e diálogo. Ao desencadear em mim um espaço de não escuta, onde não me senti visto pelo outro, o episódio me levou a refletir sobre os possíveis critérios de validação utilizados para defender os distintos pontos de vista. Percebi-me, ao refletir sobre a experiência, mergulhado em duas formas distintas de se ver a questão e que estão relacionadas aos dois domínios fundamentais do nosso viver: o domínio da experiência do viver cotidiano, no qual vivemos como se efetivamente existisse uma realidade independente do observador – existem palavras em si e, ao vivermos as palavras unicamente a partir de nossas próprias histórias, não vemos/escutamos o outro, bem como não nos sentimos vistos/escutados pelo outro -, e o domínio das explicações, no qual nos perguntamos por nosso fazer e nos damos conta de que não podemos dizer nada sobre uma realidade independente do observador – o significado das palavras é fruto de coordenações de coordenações de ações, emoções e sentires íntimos entre um que fala e outro que escuta.
A ideia para a realização dessa investigação foi desencadeada por um debate que tive com uma pessoa a respeito dos distintos significados das palavras diálogo e conversa. Usei a palavra debate para classificar o evento ocorrido a partir de minha compreensão de que um debate é uma palavra que uso para discriminar uma comunicação em dado momento entre duas ou mais pessoas que parecem a um observador defender seu próprio ponto de vista, na crença, consciente ou não, da existência de uma realidade independente. Para um observador, cada uma delas defende sua própria verdade – mais do que isso, defende sua própria verdade como se esta fosse a única visão possível sobre o tema objeto da conversa. Nesse aspecto, para um observador, um debate surge como um duelo entre certezas, na medida em que “tendemos a viver num mundo de certezas, de solidez perceptiva não contestada em que nossas convicções provam que as coisas são somente como as vemos e não existe alternativa para aquilo que nos parece certo.” (“A Árvore do conhecimento – as bases biológicas da compreensão humana”, pág. 22, Humberto R. Maturana e Francisco J. Varela)
Essa experiência que vivi como um debate desencadeou em mim o desejo de ir mais fundo num tema que tem feito parte do meu viver já há muitos anos: a comunicação e, mais precisamente, uma determinada forma de comunicar onde um observador percebe que as pessoas que dela participam são vistas e escutadas.
A partir dessa reflexão inicial, surge a seguinte pergunta:
Seria de fato possível à etimologia determinar o significado de uma palavra?
Fui buscar respostas a essa pergunta no artigo “O que é Ver”, do livro “A Ontologia do Ser” (Humberto Maturana) e no livro “A Árvore do conhecimento – as bases biológicas da compreensão humana” (Humberto R. Maturana e Francisco J. Varela). A partir de meu entendimento do que li, resolvi associar a palavra dita por um observador a uma perturbação do meio e associei o processo do escutar ao estado de atividade neuronal determinado pela estrutura de quem escuta e, portanto, não determinado pelas perturbações do meio, que apenas são capazes de desencadear estados no sistema nervoso em sua clausura operacional.
Aplicada ao episódio objeto da presente reflexão, a pergunta inicial me levou à outra:
Quando alguém defende suas visões de mundo como exclusivas, quais são os critérios de validação e as explicações que aparecem aos olhos de um observador?
Para responder a essa pergunta e ainda vendo a questão a partir da experiência de debate que desencadeou essa reflexão, encontrei as seguintes explicações:
Critério da etimologia
Diálogo vem do grego Diálogos”, onde dia significa “através” e logo é “palavra, conhecimento, razão”. Pelo latim Dialogus, o significado é similar: “entendimento através da palavra”. Conversa vem de Conversatio, que, por sua vez, vem de uma ampla família de derivados do latim Vertere, que significa “virar, voltar-se para”. Conversatio queria dizer inicialmente “viver com, encontrar-se com frequência”, passando depois para “trocar palavras com”.
Critério da cultura
No Brasil, a palavra conversa, muitas vezes, é empregada de maneira não apreciativa. Por exemplo, “conversa mole” ou, na expressão popular, “conversa para boi dormir” tem a conotação de desculpa irresponsável ou mentira contada com a intenção de enganar alguém. Outra expressão pejorativa onde se emprega a palavra conversa é “jogar conversa fora”, usada com o sentido de “falar inutilidades”. Comum também é a expressão “conversa fiada”, utilizada para descrever o modo de agir de uma pessoa quando conta vantagem com exagero ou que não pretende cumprir o que promete. No dia-a-dia, observo a aplicação da palavra diálogo para descrever o que ocorre quando uma pessoa fala com outra e as duas expressam o que querem, sem interrupções.
Critérios de escolas de pensamento que influenciaram meu pensar nos últimos anos
Quando alguém afirma que uma palavra especifica uma verdade única, ou seja, não pode ser questionada, o que essa pessoa está querendo conservar?
Nesse ponto e antes de ver a questão a que me propus investigar desde dois domínios distintos, os quais nomeio, apenas para facilitar a identificação de um e outro, por “Diálogo de Bohm” e “Conversar desde a Biologia-Cultural”, me pergunto como vivi e vivo em minha própria experiência o que estou descrevendo, de modo a ajudar a pessoa que se propuser a ler este artigo a ter uma ideia de onde digo o que digo e, a partir desse entendimento, reconstruir uma jornada reflexiva similar, se assim o desejar. Para tanto, necessito trazer à mão algumas informações sobre como vivi esses dois domínios.
Tive contato com o “Diálogo de Bohm” num espaço chamado “Escola de Diálogo de São Paulo”. As ideias que o físico David Bohm apresenta sobre o diálogo me foram introduzidas por um casal de psicoterapeutas, fundadores da Escola, a quem me afeiçoei muito rapidamente. Deste espaço de bem-estar emocional, tive a oportunidade de estudar o livro “Diálogo – Comunicação e Redes de Convivência” e, principalmente, praticar o que o livro sugere em rodas de diálogo facilitadas pelo casal de psicoterapeutas, semanalmente, durante 6 meses. Nessas rodas de conversa, um mesmo grupo de pessoas, do qual fiz parte – entre 15 e 20 pessoas – pôde vivenciar uma série de dinâmicas relacionais, onde o diálogo emergiu como um espaço de escuta genuína e conservação de bem-estar. Ao término dessa jornada, senti-me não só afeiçoado aos fundadores da Escola, assim como aos colegas de jornada.
Analogamente, no tempo e na experiência, participei dos três anos do processo da certificação em Biologia-Cultural realizado em São Paulo. A despeito das diferenças em se tratando de frequência dos encontros e das pessoas com quem me relacionei, também vivi essa experiência como um processo contínuo e recursivo de construção de vínculos, ao término do qual senti-me igualmente afeiçoado aos coordenadores do programa, Humberto Maturana e Ximena Dávila, bem como a vários colegas que me acompanharam nesse processo. Desde esse viver na conservação recursiva de meu bem-estar, onde me senti igualmente visto e escutado e as palavras conversa e diálogo especificaram para mim um modo similar de relacionar-se, é que faço as distinções a seguir.
No livro “Diálogo – Comunicação e Redes de Convivência”, David Bohm parte da etimologia para definir diálogo. Assim ele o descreve: “Diálogo vem do grego diálogos. Logos significa palavra ou, em nosso caso, poderíamos dizer significado da palavra. E dia significa através – e não dois como parece” (pags. 33/34). Ao dizer isso, desde a forma como o escuto, acabo por supor que uma palavra pode ser em si e que existe uma verdade. No entanto, ele também afirma que “aqueles que acreditam que alcançam qualquer espécie de verdade absoluta não podem participar de um diálogo, inclusive entre eles próprios” (pág. 83). Bohm continua fazendo a distinção entre diálogo e discussão: “A discussão é quase como um jogo de pingue-pongue, em que as pessoas estão raquetando as ideias para lá e para cá e o objetivo do jogo é ganhar ou somar pontos para cada participante. Num diálogo, contudo, ninguém tenta vencer. Se alguém ganha, todos ganham.” (pag. 34). Nesse aspecto, sinto que Bohm se aproxima da Biologia-Cultural, que define essa dinâmica relacional pela palavra conversar – “dar voltas juntos”. Outra aproximação que observo nessas duas formas de ver é o reconhecimento da não existência de uma realidade independente do observador. Na Biologia-Cultural, encontrei que “tudo o que é dito é dito por alguém” (“A Árvore do Conhecimento”, pág. 32) e que “uma conduta é mais ou menos adequada apenas segundo as expectativas do observador ao distinguir o ser vivo e falar dele.”(“A Ontologia do Ser”, pág. 95). Sobre isso, Bohm afirma que “é o observador quem seleciona e reúne as observações/informações importantes e as organiza sob a forma de significados e imagens. Essa seleção é feita pelos pressupostos do pensamento. De acordo com o que pressupomos, coletamos certas informações como importantes e as reuniremos de um determinado modo, segundo uma determinada estrutura.” (pág. 128)
A distinção que a Biologia-Cultural traz à mão sobre o escutar quando o descreve como uma dinâmica relacional que, quando permite que cada envolvido sinta-se livre para dizer de onde diz o que diz, abre o caminho para o amar me remete a uma pergunta feita por Bohm no mesmo livro: “Como compartilhar, quando você sabe que está com a verdade, o outro tem certeza de que também está e essas verdades não concordam?”(pág. 81) E quando escuto Bohm dizendo que “se não pudermos nos comunicar e compartilhar significados, o amor desaparecerá” (pág. 96), isso me gatilha a lembrança do amar como caminho para ampliação do ver/escutar e, portanto, como uma dinâmica relacional onde o outro aparece como legítimo outro, algo que aprendi com os estudos da Biologia-Cultural. Outro ponto que me chama a atenção nas duas formas de ver é o reconhecimento de nossa deriva natural, como seres autopoiéticos, na conservação do bem-estar, na medida em que “o corpo produz tudo o que é necessário para impedir pensamentos dolorosos – ele tenta nos proteger do que considera mau” (David Bohm, pág. 146).
Nesse espaço onde as palavras não possuem um significado a priori, mas são resultado de coerências condutais entre quem fala e quem escuta, escuto os dois verbetes – conversa e diálogo – em mim como semelhantes no mundo em que parecem querer trazer à mão.
Por último, me perguntei, como observador, o que cada pessoa no debate observado fala desde a aceitação de uma realidade independente e desde a aceitação de que “tudo o que é dito é dito por alguém… todo conhecer depende da estrutura daquele que conhece” , o que significa que “não podemos separar nossa história das ações – biológicas e sociais – a partir das quais ele (o mundo) aparece para nós” (“A Árvore do conhecimento – as bases biológicas da compreensão humana”, págs. 32, 40 e 28, Humberto R. Maturana e Francisco J. Varela).
Observo que cada pessoa fala desde sua própria história, mesmo quando diz que fala de uma realidade independente. Em outras palavras, quando alguém diz que diálogo ou conversa é o que é desde a etimologia, está apenas usando o critério da etimologia para trazer à mão as coerências aprendidas ao longo de sua própria história. O que um observador vê nesse debate específico é que uma pessoa tem uma longa história com a Biologia-Cultural e a Biologia do Conhecer, enquanto outra tem uma história mais recente com essas visões de mundo e uma história mais longa com o Diálogo de Bohm e que, ao colocarem seus pontos de vista, cada um faz desde esses domínios e de todas as coordenações de ações, pensamentos e sentires íntimos que eles evocam. Quando essas pessoas demonstram não aceitar que falam desde diferentes domínios, parecem entrar numa dinâmica orientada pela existência de uma realidade independente do observador – a realidade de cada um que cada pessoa parece querer impor à outra quando não aceita a possibilidade de existirem múltiplas realidades. Ao observar o que se processa a partir daí, vejo um espaço onde as pessoas não se sentem vistas/escutadas e, portanto, não se sentem amadas.
E, nesse ponto de meu processo reflexivo, gostaria de ampliar o olhar sobre as palavras aqui empregadas para descrever determinados tipos de dinâmicas relacionais onde as pessoas envolvidas sentem-se ou não vistas/escutadas. De um nicho circunscrito a minha experiência de debate e a forma como vivi os domínios do Diálogo de Bohm e do Escutar desde a Biologia-Cultural, amplio meu campo de estudos para as manifestações populares ocorridas no Brasil a partir do início de junho de 2013. Ao investigar por meio da ferramenta de busca Google o emprego das palavras diálogo/dialogar, conversa/conversar e debate/debater pelos veículos de comunicação de massa para descrever os fenômenos ocorridos nesse período em meu país, observei o seguinte:
A palavra diálogo é mais vezes empregada para descrever a necessidade e/ou o esforço por parte do governo em estabelecer uma relação onde o mesmo passa a escutar a população. A primeira autoridade a comentar os acontecimentos, o ministro da Secretaria-Geral da Presidência, Gilberto Carvalho, disse no dia 17/06: “O governo está preocupado com as manifestações, está buscando entendimento e, sobretudo, interessado em abrir o diálogo direto com as manifestações, entendendo o novo significado delas, que são de natureza diferente daquelas com as quais estávamos acostumados a lidar.” Em 18/06, foi assim que a ONU se pronunciou em nota assinada pelo porta-voz de seu escritório de direitos humanos, Rupert Colville: “Instamos todas as partes envolvidas a se envolver em um diálogo aberto para encontrar soluções para o conflito e as alternativas para lidar com as demandas sociais legítimas, bem como para evitar mais violência”. No primeiro pronunciamento da presidente Dilma Roussef a respeito dos protestos, ela diz: “Tenho a obrigação de ouvir a voz das ruas e dialogar com todos o segmentos.” No entanto, a primeira reação a esse primeiro discurso, lido mecanicamente em um teleprompt, não pareceu positiva: “Apesar de diálogo proposto por Dilma, brasileiros continuam a protestar”, publicou o Portal Terra em 22/06. A palavra diálogo também é utilizada pelos veículos de informação para cobrar uma postura mais democrática por parte do governo, como sugere o jornal O Estado de S. Paulo numa matéria publicada em 18/06, onde escreve que “apesar de dizer que o governo de São Paulo está aberto ao diálogo, ele (governador Geraldo Alckmin) voltou a ressaltar que o reajuste concedido no Estado foi abaixo do índice de inflação e que ele deveria ter subido para R$ 3,30 (e não R$ 3,20, o preço da tarifa atual).” A mesma linha de raciocínio é utilizada pela ex-prefeita de São Paulo, Luiza Erundina ao se referir ao atual prefeito da cidade, Fernando Haddad, em matéria publicada no Brasil Econômico em 14/06: “O prefeito devia também estar mais aberto ao diálogo. Devia chamar os líderes do movimento para uma conversa de igual para igual. O governo dele não é democrático.” Neste último trecho, já podemos observar que a palavra conversa aparece como sinônimo de diálogo.
Quando pesquiso o uso de dos vocábulos conversa e conversar associados às manifestações populares ocorridas no Brasil, eles também aparecem como sinônimo para diálogo, inclusive, no próprio discurso feito pela presidente Dilma em 21/06: “Também vou conversar sobre essas questões com os chefes dos Poderes Legislativo e Judiciário e já iniciei as conversas com representantes das manifestações pacíficas, das organizações de jovens, das entidades sindicais, dos movimentos de trabalhadores, das associações populares.” No dia 24/06, o jornal O Estado de S.Paulo usou a palavra conversa na matéria intitulada “Manifestações já ganham espaço nas salas de aula dos colégios paulistanos” para descrever uma dinâmica mais informal: “A onda de manifestações que tomou o Brasil chegou aos colégios. Além de dominarem a conversa dos jovens, os protestos motivaram uma programação oficial das escolas, que têm promovido atividades para discutir mobilidade, política, movimentos sociais, mobilização digital, partidos políticos, representatividade, ditadura, mídia e até literatura e cinema.” O vice-prefeito de João Pessoa, capital da Paraíba, em um blog politico local, trouxe uma outra conotação para a palavra conversa ao descrever a dinâmica entre congressistas e governo: “Parece até conversa de bêbados. Cada um diz uma coisa sobre algo que surge do nada.”
E debate e debater, por sua vez, vêm sendo empregado muito mais como algo relacionado à necessidade que as pessoas têm de entender o que está acontecendo. No dia 24/06, o portal de notícias UOL escreveu: “Após pressão popular, Congresso debate nesta semana temas relacionados às manifestações”. No mesmo dia, o site Catraca Livre publicou reportagem com o título “Rumo das manifestações é tema de debate em Itaquera”. No corpo da matéria escreveu: “Deflagra-se um Brasil disperso ideologicamente, confuso, sem traquejo político, reivindicando muitas coisas, ora com atos violentos, ora com atitudes nacionalistas e patrióticas, em um tenso ambiente político. Será que isso se deve pela falta de um debate político inerente ao cotidiano das pessoas sobre os assuntos do país?” Esse sentimento de incredulidade frente ao que aconteceu/está acontecendo no País foi a tônica do que observei nas redes sociais, com as pessoas tentando encaixar em seus próprios critérios de validação um fenômeno sem precedentes na história brasileira. Nesse aspecto, enquanto algumas pessoas diziam que o movimento era fomentado por representantes da direita interessados em retirar o governo atual por meio de um golpe de estado, outras afirmavam tratar-se da primeira manifestação genuinamente popular da história brasileira, insatisfeita com os rumos de um governo que se distanciou de suas origens esquerdistas para flertar com o liberalismo. No meio de um duelo entre muitas verdades, uma reflexão me chamou especial atenção: “Aqui, o que ocorreu foi a expressão molecular de um incômodo, de uma insatisfação difusa com o sistema (as pessoas sentiram que há algo muito errado com o sistema, embora não saibam explicar o que é exatamente o ‘sistema’). A vibe não era guerreira. As emoções predominantes não eram adversariais. As multidões não procuravam um inimigo para destruir. Simplesmente diziam: nós existimos, nós agora acordamos, nós queremos enfim declarar que não estamos satisfeitos com o que está acontecendo e nós não nos sentimos representados por vocês, os que estão no poder.” Da forma como escuto essas palavras ditas no dia 25/06 pelo especialista em redes sociais Augusto de Franco em sua página no FaceBook, sinto que qualquer dinâmica relacional, seja nomeada como debate, diálogo ou conversa, que emerja desde a intenção de enquadrar esse fenômeno dentro de uma verdade única, ou seja, como uma realidade independente do observador, irá, pelo contrário, afastar-se de sua compreensão e acabará por levar seus interlocutores a um espaço de não-amar. Digo isso desde as emoções que as manifestações desencadearam em mim, convidando-me a refletir muito além das palavras ditas como palavras de ordem pelos distintos grupos de manifestantes, mas pelo que a mim soou como um grito uníssono: QUEREMOS SER ESCUTADOS! Falo isso desde minha própria experiência em me sentir, diversas vezes, no meio do fogo cruzado entre essas forças antagônicas, sendo pressionado a me identificar apenas com um dos lados.
A evolução das manifestações de rua, que acompanhei não só pelo FaceBook, como também pelos diversos meios de comunicação, desencadeava em mim distintas emoções, que eram verbalizadas de modo congruente ao que um observador diria tratar-se da conservação de meu bem-estar, na medida em que eu me sentia livre para expressar-me, na confiança em que seria escutado. No entanto, como, nesse fluir, eu acompanhava as mudanças de estado de meus sentires íntimos, o que um observador poderia associar a mudanças frequentes de opinião, acabei por gatilhar em quem me escutava reações de julgamento que me levaram a um espaço de mal-estar semelhante ao que experimente no debate que me motivou a escrever esse artigo.
Pela biologia do conhecer, o que uma pessoa diz não especifica o que outra pessoa escuta do que a primeira diz. Isso porque “o sistema nervoso não capta informações do meio, como frequentemente se diz. Ao contrário, ele constrói um mundo ao especificar quais configurações do meio são perturbações e que mudanças estas desencadeiam no organismo. (“A Árvore do conhecimento – as bases biológicas da compreensão humana”, pág. 188, Humberto R. Maturana e Francisco J. Varela)
A partir de minha observação do fenômeno que experimentei de debate, distingo que:
1. Quando, numa conversa – ou diálogo – entre duas pessoas, cada uma está mais preocupada em defender seus próprios pontos de vista do que conhecer de onde o outro diz o que diz, vivendo, portanto, como se existisse uma realidade independente do observador, limitamos nossa visão de mundo, fechamos o espaço para o diálogo – ou conversa – e a reflexão, encontramos “resistências” e possivelmente desencadeamos relações de exigência e submissão e não oportunidades de co-criação no respeito-mútuo.
2. Não há nenhuma palavra na linguagem humana que tenha um significado universal e que possa, portanto, ser empregada sem se levar em conta a cultura e a história pessoal de quem a escuta, ou seja, os critérios de validação que, para um observador, a palavra desencadeia na pessoa que a escuta. Quando nos perguntamos por nosso fazer e nos damos conta de que não podemos dizer nada sobre uma realidade independente do observador, nos encontramos num espaço onde o diálogo – ou conversa – se torna possível, uma vez que, “ao estarmos imersos na linguagem como um sistema de coordenações de coordenações de ações consensuais, nós, seres humanos, produzimos um mundo objetivo utilizando nossas próprias mudanças de estado, como descritores que especificam os objetos que constituem esse mundo” (“A Ontologia do Ser”, pág. 78, Humberto R. Maturana).
No entanto, o que se passa quando, numa dinâmica relacional, algumas palavras são aceitas sem qualquer questionamento enquanto outras não o são? Por que a pergunta “o que você quer dizer com isso? (de onde você diz o que diz?)” nem sempre aparece? Observo em meu viver que, se não há incômodo, a pergunta não aparece, na mesma medida em que não me pergunto sobre meus rins se as pedras que “fabrico” não me provocam dores quando se movem. Se as palavras, como perturbações do meio, estão congruentes com o operar do organismo que é afetado por elas, ou seja, por quem escuta, a pergunta não aparece. Se as perturbações não desencadeiam ou disparam em quem escuta nenhum tipo de conduta que o organismo interpreta como mal-estar, organismo e meio caminham num fluir não reflexivo na conservação do bem-estar de cada envolvido nessa dinâmica, sem que haja qualquer necessidade de se perguntar o que cada um envolvido nessa dinâmica quer dizer com o que diz.
Se, por outro lado, aparece algum tipo de incômodo, quem se sente incomodado pode ou não fazer a pergunta desde seu operar como um ser auto-poiético, que busca sempre a conservação de seu bem-estar. Mas “como poderíamos coincidir em nossas coordenações de ações se não houvesse um mundo externo objetivo? Coincidimos em nossas coordenações de ações, e todo nosso viver assim o mostra, na medida em que vivemos juntos o suficiente para coordenar nossas ações em um mundo que surge com nossas coordenações de ações.” (“A Ontologia do Ser”, pág. 103, Humberto R. Maturana)
Em minhas próprias palavras, não é, de modo algum, a etimologia de uma palavra a responsável por sua compreensão no âmbito relacional, mas justamente as coordenações de ações realizadas pelas pessoas envolvidas nessa dinâmica, que explicam a palavra desde sua história particular com a palavra em questão, na medida em que “nossa experiência está indissoluvelmente atrelada à nossa estrutura… não podemos separar nossa história das ações – biológicas e sociais – a partir das quais ele (o mundo) aparece para nós.” (“A Árvore do conhecimento – as bases biológicas da compreensão humana”, pág. 28, Humberto R. Maturana e Francisco J. Varela)
Portanto, não se pode definir que exista uma palavra adequada a priori para demonstrar um determinado significado e que, ao defenderem seu próprio ponto de vista sobre o conversar ou dialogar como única verdade, as duas pessoas que debatem estão, justamente, se contradizendo ao promover um não-conversar ou um não-dialogar, posto que não se escutam e, assim, não abrem espaço para o entendimento de onde o outro diz o que diz e, portanto, não legitimam a visão do outro como uma verdade possível num mundo de múltiplas verdades.
Quando uma pessoa não aparece como legítima outra na relação com alguém, um observador distingue um espaço relacional onde o amar não aparece, o que me leva a concluir que o uso de qualquer palavra na crença de um significado intrínseco pode levar a uma relação de dominação e desrespeito onde não se conserva o bem-estar, desencadeando na pessoa participante dessa dinâmica, ao refletir sobre o seu fazer e descobrir-se num fazer não-congruente com sua auto-poiesis, a disposição de não mais se relacionar com o outro.